A escrita como (r)existência
Sempre que me deparo com a tarefa de iniciar um texto confesso que, apesar da urgência das palavras que me exigem pronúncia, todas as teias de aranha da kitnet onde vivo parecem subitamente me incomodar e a necessidade de interromper a escrita se faz quase inevitável. As amáveis palavras de Glória Anzaldúa me acodem como um abraço em momentos assim:
Quem nos deu permissão para praticar o ato de escrever? Por que escrever parece tão artificial para mim? Eu faço qualquer coisa para adiar esse ato – esvazio o lixo, atendo o telefone. […]. Como é difícil para nós pensar que podemos escolher tornar-nos escritoras, muito mais sentir e acreditar que podemos! O que temos para contribuir, para dar? Nossas próprias expectativas nos condicionam. Não nos dizem a nossa classe, a nossa cultura e também o homem branco, que escrever não é para nós? (ANZALDÚA, 2000, p. 230).
Entendo, então, que esta questão não reside no centro do meu umbigo, mas me acontece justamente pelo corpo marcado pela presença de aspectos comuns a certos grupos identitários. Analisando o quadro de rebaixamento ao qual as mulheres, em particular as negras, são submetidas, não me espanta que Glória, uma lésbica chicana, como se define no mesmo texto, se sinta acuada diante o ato de escrever. O que pode haver de relevante na fala de pessoas tão outras como nós?
Com Neusa Santos Souza (1983), aprendi como funciona o processo de silenciamento de ideias nos corpos negros. Seu prefacista, Jurandir Freire Costa, afirma que existe um processo de destilamento do silêncio em nós, pessoas negras. Além disso, ele diz sobre o processo de construção de uma identidade dilacerada pelo racismo uma vez que a violência racista age sobre a consciência das pessoas negras nos paralisando e naturalizando selvagerias ao ponto de não nos sentirmos autorizadas a nos defender do que nos fere. E a escrita me ocorre como muito além de uma defesa, mas como uma possibilidade real de intervir na realidade que me traduz cotidianamente, na ausência de mim como já demonstrado na revisão bibliográfica analisada por Amauri Mendes Pereira (2013) e sua denúncia às lacunas epistemológicas na produção de conhecimento em se tratando de racialidade nas ciências sociais brasileiras. É ainda a possibilidade de borrar a inadequação como status permanente da negra e lésbica esta outra do bem.
A escrita é a possibilidade de existir sem fantasia, é a possibilidade de estraçalhar a lente distorcida do poder branco, negar os discursos dos poderosos e da “gente de bem” que realmente acredita na ideia de que existências negras e lésbicas são uma constante parada gay que vai fazer o mundo entrar em colapso, como sugerem figuras nocivas que com seus discursos limitados criam realidades violentas.
Por vezes, a ideologia colonial vence. Impõem-se sobre o meu espírito com toda a complexidade de alienação e faz crer que não há muita saída para sujeitos tão baratos. Virgínia Leône Bicudo (1944/2010), mulher negra e primeira psicanalista não médica do Brasil (MAIO, 2010), chamou esse mal-estar que impede a grafia da existência própria e irreconciliável com a branquitude de sentimento de inferioridade, ao que traduzo aqui como a destilação de ódio, investido para distanciar e desumanizar pessoas negras.
A estratégia racista é a de negação total ou parcial da humanidade do meu grupo étnico, segundo Carlos Hasenbalg (1982), e se a estratégia racista é essa, qual será a estratégia usada pelo machismo e pela lesbofobia, afinal? Para a “negra, lésbica, feminista, socialista, poeta, mãe de duas crianças incluindo um garoto e membra de um casal interacial”, Audre Lorde (2009), as opressões não se diferem nem podem ter nossa militância cativa por uma única dor.
Enquanto negra, mulher e lésbica não me é possível reconhecer qual dessas identidades se apresenta de maneira mais essencial. Todos estes aspectos me constituem e não posso simplesmente abandoná-los quando me convém. Não é possível. Apesar de sentir em cada poro as projeções do sistema opressor e a indissociabilidade que o meu ser as percebe, quem explicou pra mim toda a impossibilidade de hierarquizar suas frentes de massacre foi, mais uma vez, Audre Lorde:
Pela minha pertença em todos esses grupos eu aprendi que opressão e intolerância da diferença vem em todas as formas e tamanhos e cores e sexuallidade: dentre aquelas de nós que dividem os objetivos da libertação e um futuro trabalhável para nossas crianças, onde possa não existir hierarquia de opressão. Eu aprendi que sexismo (a crença de superioridade inerente de um sexo sobre todos os outros e então seu direito de dominância) e heterosexismo (a crença na superioridade inerente de um modelo de amor sobre todos os outros e então seu direito a dominância) ambos nascidos da mesma fonte como o racismo- a crença em superioridade inerente de uma raça sobre todas as outras e então seu direito de dominância. (LORDE, 2009,)
Percebo então que minha fuga da escrita é algo muito maior que eu. Percebo que as expectativas que por vezes ainda me atormentam fazem parte de uma arquitetura de desencorajamento. Seja pela crença de que brancos são superiores ou pela crença de que homens são superiores ou ainda pela crença de que héteros são superiores, no fim das contas, sou eu colocada como inferior em todas elas.
Me pergunto quantas outras como eu se encontram agora paralisadas diante das telas de seus computadores ou da ponta sempre fina de um lápis, quase virgem, atormentadas pela ideia de se revelar diante do papel e expor as verdades que nos incutem de maneira mesquinha. Eu, pelo menos, vivo me borrando de medo disso.
A intelectualidade não é uma herança da qual tenhamos orgulho. Ao contrário, é uma ferramenta roubada de nós (ANZALDÚA, 2000) por inúmeros fatores políticos e sociais que ainda mantém mulheres negras na base da sociedade brasileira (RIBEIRO, 2017) realizando serviços braçais e sendo entorpecidas pela ideia de que a intelectualidade é um status que não lhes convém pela própria firula que a intelectualidade desprovida de qualquer senso de lugar de fala apregoa, roubando de nós, enquanto grupo minoritário, as possibilidades de inaugurarmos quem somos, como explica bell:
E o conceito ocidental sexista/racista de quem e o quê é um intelectual que elimina a possibilidade de nos lembrarmos de negras como representativas de uma vocação intelectual. Na verdade dentro do patriarcado capitalista com supremacia branca, toda a cultura atua para negar às mulheres a oportunidade de seguir uma vida da mente torna o domínio intelectual um lugar interdito. Como nossas ancestrais do século XIX só através da resistência ativa exigimos nosso direito de afirmar uma presença intelectual. O sexismo e o racismo atuando juntos perpetuam uma iconografia de representação da negra que imprime na consciência cultural coletiva a ideia de que ela está neste planeta principalmente para servir aos outros. Desde a escravidão até hoje o corpo da negra tem sido visto pelos ocidentais como o símbolo quintessencial de uma presença feminina natural orgânica mais próxima da natureza animalística e primitiva (HOOKS, 1995, p. 468).
Remate flutuante
Pensar sobre qual o lugar que ocupo no mundo e no mundo em mim tem sido uma árdua e poderosa tarefa. Os estudos feministas de lésbicas negras me conduzem para perspectivas que entrecruzam os vários fluxos de minha existência para um encontro profundo com questões que jamais fui capaz de flertar. Talvez porque ainda não conhecesse nenhuma perspectiva que me acolhesse com tanto afeto e de maneira tão global.
Acessar uma universidade, de modo geral, não me apresentou/a textos e autoras(es) que levassem em consideração a não universalização do branco para definir o que é humano. As teorias sobre as quais me debrucei simplesmente ignoravam que sou uma lésbica negra vivendo em um país onde a escravidão de pessoas negras se encerrou legalmente há apenas 130 anos e que tenho questões muito urgentes e específicas para serem tratadas como implícitas ou secundárias no que se refere ao entendimento do que é caro ou não na produção de conhecimento e realidade.
Estar com essas negras lésbicas e suas pretensiosas ideias sobre si tem me apresentado perspectivas mais coerentes e afetuosas sobre este corpo que sou e tudo que ele é capaz de borrar e transcender. Me sinto mais capaz de olhar para mim sem as lentes de estigma e violência do discurso único, o mesmo que abarca as teorias sobre as quais falávamos há pouco.
A escrita me salva da definição alheia mas também cria trilhos secretos que me revelam rotas para construir uma verdade própria e, constantemente, me liberta da sequidão que mata meus prazeres e estorrica minhas possibilidades criativas mas me coloca em contato com o erótico com uma força avassaladora.
As negras lésbicas que vieram antes escreveram para que eu pudesse escrever também e embarcar na constante tentativa de reconciliação com o meu corpo e de reconhecimento dos meus desejos. Talvez por isso tenha atingido a incrível marca da conclusão de mais um raciocínio com palavras digitadas. Estas mulheres, escrevendo sobre um lado da história que didaticamente não se costuma apresentar me autorizaram e me incentivaram a preencher essas laudas com o que realmente me importa.
Sonhei
Sonhei que estava morta
Vi um corpo no caixão
Em vez de flores eram livros
Que estava nas minhas mãos
Sonhei que estava estendida
No cimo de uma mesa
Vi meu corpo sem vida
Entre quatro velas acesas
Ao lado o padre rezava
Comoveu-me sua oração
Ao bom Deus ele implorava
Para dar-me salvação
Suplicava ao Pai Eterno
Para amenizar o meu sofrimento
Não me enviar para o inferno
Que deve ser um tormento
Ele deu-me extrema-unção
Quanta ternura notei
Quando foi fechar o Caixão
Eu sorri… e despertei
Carolina Maria de Jesus
Referências bibliográficas
ANZALDÚA, Gloria et al. Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo. Estudos Feministas, v. 8, n. 1, p. 229-236, 2000.
BICUDO, Virgínia Leone. Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo. Edição organizada por Marcos Chor Maio. Editora Sociologia e Política, 2010.
COSTA, Jurandir Freire. Da cor ao corpo: a violência do racismo. Violência e psicanálise, v. 2, 1983.
CORNEJO, G. La guerra declarada contra el niño afeminado: Una autoetnografía “queer”. Conos: Revista de Ciencias Sociales, Quito, n. 39, p. 79 – 95, Janeiro 2011.
GONZALES, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, 1984. Disponível em: https://goo.gl/VFdjdq>. Acesso em: 10 mai 2018.
LORDE, Audre. Não existe hierarquia de opressão. Tradução e comentários de Renata. Disponível em:< http://www. geledes. org. br/nao-existe-hierarquia-de-opressao/>. Acesso em: 06 agosto 2018
OLIVEIRA, Leandro Roque de. Boa Esperança. Intérprete: Emicida. Brasil: Warner /Chapell Music, 2015. Faixa 10.
PEREIRA, Amauri Mendes. O TAO da Teoria Social frente à questão racial no Brasil. In: PEREIRA, Amauri Mendes. Para além do racismo e do antirracismo: a produção de uma Cultura de Consciência Negra na sociedade brasileira. Itajaí: Casa Aberta Editora, 2013. p. 151-262.
RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Letramento Editora e Livraria LTDA, 2018.
SIMAKAWA, Viviane Vergueiro. Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de gênero inconformes: uma análise autoetnográfica da cisgeneridade como normatividade. Dissertação (Mestrado Multidisciplinar de PósGraduação em Cultura e Sociedade) – Universidade Federal da Bahia, Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos, Salvador, 2016.
SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro. Rio de Janeiro: Graal, v. 19, 1983.
SPIVAK, G. C. ¿Puede hablar el sujeto subalterno? Orbis Tertius, n. 6, p. 175 – 235, 1998. Tradução de José Amícola.
Versão não reduzida publicada em: https://www.even3.com.br/Anais/conpeduc2018/108612-NEGRAS-LESBICAS–O-QUE-SOMOS-NA-ESCRITA-O-QUE-A-ESCRITA-E-PARA-NOSSA
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