Várias são as motivações que me levam a refletir diariamente sobre a condição feminina negra nas periferias de Belém. A principal delas é que eu sou personagem da minha própria história. Se há algo que marca minha trajetória negra, é minha movimentação pelos bairros “periféricos” de Belém. Minha mãe é uma andarilha e com ela aprendi a fazer a mochila muito cedo. Hoje continuo migrando. Sou moradora do bairro do Bengui, mas é pelo bairro da Terra Firme que faço meu local de fala.
O coletivo que integro, o Casa Preta, está na TF e é lá onde concentramos grande parte de nossas atividades, incluindo a busca pela problematização da condição feminina negra na periferia da cidade.
A Terra Firme, ou TF, é um bairro marcado pela migração. De acordo com o censo de 2010 do IBGE, habitam 34.468 mil pessoas no bairro, sendo 10.041 migrantes. Outra característica da TF são as palafitas construídas às margens do Rio Tucunduba. É um bairro predominantemente negro (ou pardo). Onde as igrejas dividem as mesmas ruas que os terreiros e onde habita boa parte da história do Rap em Belém.
Outra questão que me influencia diariamente e me leva a escrever sobre esse tema é o insistente silenciamento dado à participação e contribuição das mulheres negras na história brasileira, recente ou passada. E Belém também é palco desse silenciamento, a começar pelo mercado de trabalho.
Ano passado o IDESP apresentou um relatório sobre a condição da mulher negra no mercado de trabalho de Belém. A partir dos dados do censo de 2010, o IDESP mostra que 59% da população de Belém se auto declara negra ou parda, e desse total, 49% são mulheres. Entre os homens, Belém segue a realidade nacional, isto é, o homem negro recebe substancialmente menos que o homem branco, mas nada é mais assombroso do que a realidade feminina: a renda média da mulher negra de Belém não alcança R$ 300.
O relatório registra a existência de 198.630 mulheres empregadas domésticas em Belém, sendo que 84,11% são de mulheres negras. Outros dados do IDESP mostram que 75% das mulheres negras estão ocupando posições sem proteção legal, sem remuneração ou com baixos salários. Entre as mulheres negras que trabalham sem remuneração o percentual é de 13%, contra 8% de mulheres brancas. A quantidade de negras trabalhando como empregadas domésticas (com e sem carteira assinada) supera o de negras registradas como empregadas com carteira assinada.
Vi isso na prática. Nas empresas e universidades por onde passei em Belém, trabalhei com poucas mulheres negras ocupando cargos de gestão. E além de sermos poucas, somos motivadas a sermos morenas. Aliás, Belém é uma cidade morena. Aqui predomina a negação da mão de obra negra escravizada na história da cidade. E sobre as primeiras mulheres negras, então, os registros são parcos, sendo Vicente Salles (1931-2013) o pesquisador mais notório.
Na formação da sociedade paraense, Vicente Salles registra a existência de três comunidades femininas: o grupo informal das Taieras, lavadeiras que habitavam o bairro do Umarizal, antigo bairro negro e hoje bairro branco de classe média, que ficava no limite com o bairro da Campina onde habitavam as famílias abastadas; o Cordão das Estrelas do Oriente, “composto por negras e mulatas”, dirigidas por um homem e além das festividades religiosas prestava também assistencialismo popular; e as Irmãs de São Raimundo, igualmente lideradas por um homem negro e com abordagem religiosa.
Segundo o historiador, são poucos os registros de mulheres negras organizadas em associações ou outros modelos de comunidade. Nenhum desses grupos sobrevive e suas memórias estão parcialmente restritas ao folclore, à música e à poesia.
Vejamos, se para o homem negro é difícil lidar com sua condição étnico-racial e romper as amarras dos valores racistas que o Brasil ainda cultiva, imagina para a mulher negra, historicamente vista como “aquela que serve”. Concepção que vem desde quando o homem branco passava o chicote no homem negro e à mulher negra cabia o chicote, o estupro e a separação dos filhos e maridos. Essa herança perdura e possui uma competência ainda tão forte quanto daqueles anos de escravidão autorizada.
Diante de tudo isso é que observo os riscos de nossas meninas pretas moradoras da Terra Firme. Os riscos de anulação. Da regularidade da subserviência ao patriarcado machista (negro e branco). De sua exposição na vitrine de carnes baratas. Das especificidades de sua saúde não investigada. Da falta de olhos nos olhos.
Como em Palmares, a Terra Firme tem suas Dandaras. E como na história de Belém, tem suas taieiras. São meninas e mulheres que lutam para não sucumbir.
É o caso de Camila, menina que descobriu no agbê e na capoeira formas de ser ouvida e de ser vista protagonizando uma construção coletiva e de resistência ancestral. De Nazaré, que compreendeu que podia recontar sua história e de outras negras, ao contar uma nova história para seus cabelos e deles construir resistência. É como mãe Simone que pelo Candomblé tomou conta de sua negra voz e que, sendo filha de uma casa de Yás e Yabás, protagoniza sua própria história como uma liderança nos espaços ocupados pelos povos de terreiro. Entre as Dandaras da TF, existe também mãe Graça, maranhense, que pelo Tambor de Crioula expõe a resistência feminina negra dançando e saudando nossas divindades sincretizadas. Ainda há dona Ana, rezadeira, benzendeira, curandeira, a quem recorremos para aliviar parte de nossas angustias físicas e espirituais.
Entre esses exemplos, há centenas de outras. Há meninas e mulheres negras casadas com os traficantes do bairro, há entre elas as que assumem a liderança de algumas bocas junto com os companheiros. Há as que aceitam a bigamia de seus companheiros, mas que se mantêm monogâmicas e há as que matam por não aceitarem seus companheiros envolvidos com outras mulheres. Nem todas essas histórias são de transformação ou são contadas em primeira pessoa. A TF também é monitorada por uma violenta polícia militar que incrementa e autoriza a violência sofrida por meninas e mulheres negras e que por vezes são elas mesmas criminalizadas “por se exporem demais”.
A TF é um espaço em movimento. E a movimentação é predominantemente feminina. Nesses movimentos habitam as necessidades de resistência e de protagonismo feminino negro. Especialmente para que nossas memórias, negras e femininas, não sejam mais contadas em pequenos parágrafos.