Texto escrito por Thiane Neves e Suhellen Sena.
“(…) E, então, eu espero que a minha presença em suas telas e nas revistas possam guiar você, jovem menina, a uma jornada similar. Que você sinta a validação da sua beleza externa, mas também possa encontrar uma profunda beleza interior. Pois não há cor para essa beleza”. (Lupita Nyong’o)
Enegrecer, de acordo com o novo dicionário Aurélio, é: tornar negro, escurecer; denegrir, difamar, desacreditar. Ajuntar-se uma multidão (de pessoas, animais, coisas). Segue por aí. Sabe de nada o inocente Aurélio … enegrecer é ter consciência da negritude, da história negra, é ter empoderamento negro em uma sociedade cujo embranquecimento teima em tentar sufocar nossas vozes, formas de expressão, o brilho e a altivez de nossos batuques, danças e criações.
Milton Santos declarou que “Ser negro no país é foda”. Imagine ser negra num mundo de machos caretas. Sueli Carneiro lembra que nós, mulheres negras, “Fazemos parte de um contingente de mulheres com identidade de objeto. Ontem, a serviço de frágeis sinhazinhas e de senhores de engenho tarados. Hoje, empregadas domésticas de mulheres liberadas e dondocas, ou de mulatas tipo exportação”. Os espaços públicos são interditados para nós. Incluindo os midiáticos.
Enegrecer é criar nossas estratégias de ocupação e de circulação, são essas estratégias que nos fazem resistir ao invés de sucumbir. Se não nos querem na tv e nas revistas, criamos nossos blogs, escrevemos nossos livros, organizamos nossos próprios eventos. Se não nos querem nos outdoors e nos cartazes, ocupamos os muros e as paredes das ruas. Territorializamos. E assim nos espalhamos pelas cidades brasileiras. Porque nenhuma expressão artística negra é apenas uma manifestação artística. Toda a nossa cultura é resistência e sobrevivência.
Ao enegrecemos, percebemos que crescemos sem referenciais femininos negros. Percebemos que a nossa beleza é recusada, estereotipada e achincalhada. Existe uma regra clara: somos coisificadas, erotizadas e nossas competências profissionais limitadas aos serviços de execução. Quase nunca somos as gestoras, as líderes, as executivas, a linha de frente. Enegrecer é descortinar e perceber que nunca somos o editorial de moda.
E é por isso que a ocupar a rua é minha estratégia. Nega Suh é meu nome. Antes de pensar e viver a arte nas ruas, cuja ocupação ainda é predominantemente masculina e severamente machista, vivi (e ainda vivo) a busca e a conquista de espaços, oportunidades, liberdade de voz, arte e pensamentos. É essa busca, vivenciada pelo meu corpo e com pé no chão pelo fato de ser mulher negra em nossa sociedade, que me faz continuar lutando.
O grafite vem à tona a partir do momento em que (não) me identifico nas ruas, onde a mulher e o grafite parecem ter uma relação de sub arte e a figura feminina fica restrita à “mina do brother” que está a grafitar. Obter respeito, visibilidade e ter nossa capacidade criativa reconhecida nos muros é uma luta diária e ilimitada. E ser uma mulher negra e empoderada, que usa o grafite para se expressar e dialogar com pares – grafitando personagens negras, nas cores que nos identificam, nas infinitas comunicações que a arte urbana significa – torna o desafio ainda mais complexo.
A minha militância pelo movimento de mulheres negras em Belém (PA) é o ponto primordial para que eu ocupe esses espaços. A presença e a imagem da mulher negra nos muros retratam nossa autoestima, nossos direitos e a quebra de estereótipos sobre nossa representatividade, como retratam nossa coletividade e nossa cumplicidade. Levar as nossas vozes, independente de técnicas, status, ou qualquer outro atributo individual que não seja em prol do nosso bem viver enquanto mulher negra é minha forma de desconstruir a predominância da figura machista endurecida pelo patriarcado e pelo embranquecimento social.
No primeiro graffite que fiz em Belém, éramos duas mulheres negras em meio a aproximadamente 30 homens. Em minha primeira marca nos muros de Belém, assinaram junto comigo todas as mulheres que estavam juntas, a lutar e militar por nós mesmas, um pequeno coletivo que se firmava e que desbrava até hoje a busca de espaços para ocuparmos e nos representarmos por nós mesmas, para que a imagem da mulher negra seja equivalente com nossas múltiplas identidades.
Por trás da arte, o grafite tem como objetivo maior de ser um canal amplo, físico, artístico, cultural e político de comunicação. E é dessa forma que uso a nossa identidade negra para estar e ser a rua, grafitar a nossa realidade, a vivência das comunidades, fazendo com que as pessoas se vejam naquele trabalho: “eu não sabia que um dia eu me veria nesse lugar” ou “somos nós ali”.
Ocupar os muros, em espaços públicos ou privados como mulher negra, é umas das formas mais livres, identitárias e representativas que minha militância pode alcançar. Cada arte é um diálogo político, de afronta, de combate ao racismo, machismo e provoca audiência para as periferias e para os quilombos. Poder me afirmar mulher negra todos os dias é o que me motiva em todo espaço e lugar que eu puder expressar a nossa identidade negra.
Sou negra e me chamo Thiane (ou Thica). Também moro em Belém (PA). Por ser publicitária, mantenho íntima relação com a mídia. Ver os muros ocupados pelas tintas da Nega Suh e de outras mulheres negras grafiteiras ajudam em meu enegrecer. Na minha edificação indenitária.
Não estou na tv, estou nos muros! Estou na rua! Vista por uma quantidade de pessoas que ibope nenhum pode mensurar: pedestres, ciclistas, motoristas, estudantes, executivxs, moças, senhoras, ricxs e pobres, pretxs e brancxs. Nega Suh não me pediu para fazer um teste de câmera ou um teste de luz, muito menos para amarrar o cabelo ou soltá-lo deixando-o exótico. Nada disso. Eu estou nos grafites e nos muros de única e exclusivamente por ser mulher negra.
Mídia de pertencimento. Melhor lugar para a prática dos 4ps. Não os 4ps da propaganda. Mas os 4ps do enegrecimento: poder para o povo preto. Nós somos midiáticas. Nos muros somos rainhas, musas, não somos marginais, não somos sexo fácil, não somos objeto de consumo. Nem mercadoria para o capital.
É comum ouvimos que nas cadeias femininas estão detidas muito mais mulheres negras do que mulheres de outras etnias por uma questão estatística (porque somos a maioria da população). Então por que não protagonizamos também na mídia, nas universidades, na política? E as respostas geralmente são acompanhadas de exemplos de mulheres negras em lugares de destaque, mas por que ainda somos vistas como exceção nesses espaços e nas cadeias somos vistas como maioria.
Em novembro de 2014 as Blogueiras Negras fizeram uma análise de propagandas de produtos e marcas em busca da representatividade da mulher negra nesses espaços na ocasião da Black Friday. Foram 23 marcas analisadas de categorias como vestuário, cosméticos, brinquedos, calçados, tecnologia. Tomada pela mobilização das meninas, fiz uma análise de quatro marcas aqui de Belém e os resultados são idênticos. Menos de 20% de representatividade negra nas propagandas, nas ações mercadológicas de qualquer dimensão.
Se a mídia insiste em silenciar nosso protagonismo e nosso enegrecimento, os muros não deixarão.
* As imagens são do projeto ParÁfrica, de Belém.
Referência:
ARAÚJO, Luciana. Mulher negra é invisível na publicidade, aponta vice-diretora executiva do Instituto Patrícia Galvão. Disponível em: < http://agenciapatriciagalvao.org.br/mulher-e-midia/pautas-midia/mulher-negra-e-invisivel-na-publicidade/ >
BLOGUEIRAS NEGRAS. Não me vejo, não compro. Disponível em: < http://blogueirasnegras.org/2014/11/26/nao-me-vejo-nao-compro/ >
CARNEIRO, Sueli. Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na américa latina a partir de uma perspectiva de gênero. Disponível em: < http://arquivo.geledes.org.br/em-debate/sueli-carneiro/17473-sueli-carneiro-enegrecer-o-feminismo-a-situacao-da-mulher-negra-na-america-latina-a-partir-de-uma-perspectiva-de-genero >
NOGUEIRA, Kiko. O verdadeiro crime da propaganda racista da cerveja Devassa Negra. Disponível em: < http://www.diariodocentrodomundo.com.br/o-verdadeiro-crime-da-propaganda-racista-da-cerveja-devassa/ >