A história da vida amorosa das mulheres negras é a não-história. É a história da solidão.
É a história do não-valor, do esquecimento, da objetificação, do não-reconhecimento.
Estamos demograficamente na periferia das cidades. Estamos também constantemente na periferia dos relacionamentos. Bem como todas as relações sociais, a afetividade também é dotada de cor. A “fantasmagórica” e subjetiva capacidade de amar é gestada no seio de construções ideológicas objetivas de uma sociedade racista, nas quais enquanto indivíduos interagimos dialeticamente.
Me referindo especificamente aos relacionamentos heterossexuais (embora essa realidade se repita em todas as formas de amar), somos:
Rejeitadas pelos homens negros. [1]
Objetificadas e descartadas pelos homens brancos. [2]
Os “companheiros” pró-feministas de esquerda são, frequentemente, os mais hipocritamente racistas e os que mais nos violentam. Enquanto assumir nossa negritude, nossas roupas, nossos cabelos, nossa cultura faz parte de um doloroso processo de empoderamento, entre uma infinidade de militantes disputa-se com frequência quem é mais revolucionário, quem tem mais negros e LGBT’s em seu círculo, quem se relaciona ou é capaz de desfilar com mais corpos negros (provando assim não serem racistas!); finalmente, acaba-se disputando quem “experimentou” mais corpos oprimidos.
Isso não é colocado explicitamente, mas não é menos evidente e violento, entretanto.
A conclusão da ciranda é sempre a mesma: seja no seio dos setores de esquerda, seja no resto da sociedade, as negras seguem sendo descartadas, “enroladas”, não assumidas. A culpa é sempre delas: “Você me confunde”; “Seu empoderamento me assusta, não sei explicar”; “Você está entendendo errado! Do modo como as coisas aconteceram, sei que parece que eu te subjuguei, mas você está errada!”; “Você é louca!”. O racismo toma diferentes argumentos. Cada preta tem o seu pessoal (mas não inédito) pacote de chibatadas verbais cravados em seu íntimo. O amor, quando colocado com seriedade e publicamente, tem sempre a mesma cor branca. Nós, pretas, entramos para as estatísticas do IBGE como as celibatárias definitivas.[3]
Frequentemente nos encontramos à beira de abismos emocionais. Abismos que não foram cavados pelos nossos pés, embora nos culpemos! São abismos orquestrados socialmente e cavados por pés brancos em sapatos lustrados.
A solidão de cada preta é a solidão de toda uma classe racial. Tem o peso de milhares de navios. Tem o peso de séculos de sequestros, escravização, estupros. Séculos de convencimento: não somos dignas de respeito, amor e de sermos assumidas orgulhosamente pelos que conosco se relacionam.
Pelas feridas de cada preta corre o mesmo sangue. O sangue de milhares de meninas negras subalternizadas que não pode ser estancado por fármacos ou intervenções médicas. É um caminho espinhoso e desértico na subjetividade de cada uma.
A violência que as mulheres racializadas sofrem, apenas as mulheres racializadas podem sentir. Valorizamos a sororidade, mas apenas as mulheres racializadas podem sentir. Somos marcadas desde o nascimento. Desde o instante em que nossa existência se revela negra para o mundo. Mas também somos marcadas como as descendentes das aguerridas mulheres inconformadas e revolucionárias. Somos da mesma semente que Dandara, Luiza Mahin e, sobretudo, somos da mesma semente de nossas mães solteiras que continuamente resistem!
As histórias que sangram até aqui jamais serão apagadas. Não passarão em BRANCO. E não o devem. Mas sobretudo, não devem ser incorporadas como marcos intransponíveis!
Sigamos com fôlego, sem perder o orgulho. Mantemos nossos corações, apesar da dor, capazes de nutrir nobres sentimentos.
Nossa resistência diz respeito ao nosso futuro. Para que um novo destino nos seja construído. Para que as vidas de cada uma de nossas filhas conheça o amor do princípio ao fim.
Quando uma mulher negra ama, nenhuma mulher ou homem negro retrocedem!
RACISTAS, MACHISTAS, NÃO NOS DESTRUÍRÃO!
Imagem destacada: Campanha Beije sua preta
Referências sobre o tema:
[1] SILVA, Claudete Alves da . A solidão da mulher negra – sua subjetividade e seu preterimento pelo homem negro na cidade de São Paulo. 2008. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.
[2] PACHECO, Ana Cláudia Lemos. “Branca para casar, mulata para ‘F’ e negra para trabalhar”: escolhas afetivas e significados de solidão entre mulheres negras em Salvador, Bahia.2008. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas.
Pesquisa mostra que raça é fator predominante na escolha de parceiros conjugais. Disponível em: [3]<http://www.ebc.com.br/2012/10/pesquisa-mostra-que-raca-e-fator-predominante-na-escolha-de-parceiros-conjugais> Último acesso em 02 de Fevereiro de 2015.