Texto originalmente publicado na Revista Afirmativa
“Carbonizadas de remédios, tapas, pontapés… escuras flores puras, putas, suicidas, sentimentais…”
Não sei nem por onde começar esse texto. Cada nova reflexão sobre a situação das mulheres em todas as partes do planeta parece que estamos retornando para uma enorme espiral verborrágica do óbvio: 2019, século 21, 21 casos de feminicídio registrados no Brasil na primeira semana de janeiro. Incríveis avanços tecnológicos e um abissal retrocesso civilizatório em marcha, mais uma vez, comandado pelos homens. Os dados são estarrecedores, mas parecem frios, pois a impressão que dá é que ninguém se importa. Donald Trump está eleito. Jair Bolsonaro está eleito. A força do reacionarismo já dá sinais consistentes na Europa, América do Norte e América do Sul, com votações expressivas nos últimos processos eleitorais. No Oriente Médio, a luta das mulheres por direitos básicos segue a passos lentos e o Estado continua legitimando e praticando um sem número de violências contra seus corpos e suas vidas.
Quando vamos poder falar de oura coisa que não a violência? Quando o diabo da violência deixará de ser pauta central para nossas reflexões? O 8 de março virou uma marca: 8M. É bonita e até rende umas artes Modernas e Maneiras. Mas quando penso na letra M não consigo não pensar em nada que não seja Morte, Miséria, Medo, Milícia, Marielle. Sim, Marielle Vive em nós, mas ela está Morta e nada pode mudar isso. Marielle virou semente de esperança e luta sim, pois seu legado foi gigantesco e sua coragem inspirou a caminhada de todas nós, não à toa tantas mulheres ligadas direta ou indiretamente à vereadora, foram eleitas no pleito de 2018. Mas o assassinato dela também deixou semente, semente de ódio, que viemos sentindo na pele no dia a dia, e que sentimos tão fortemente quando o país resolveu eleger o pai daquele que quebrou a placa de Marielle e que, cada dia mais, se mostra envolvido intimamente com milícias acusadas de executar nossa líder.
Já disse que não vou repetir os números, mas todas sabemos que enquanto eu to escrevendo esse texto, alguma mulher está sendo espancada; que enquanto você está lendo esse texto, algumas mulheres estão sendo estupradas; que enquanto alguém está compartilhando esse texto, alguma mulher está sendo morta. Isto sem falar nos incontáveis assédios, olhares, palavras de fel destinadas a nós praticamente em 24 horas por dia, isto sem falar nos diagnósticos de doenças psicossomáticas que muitas de nós está pegando no laboratório neste momento, sem falar nos traumas, sem falar no pânico cada dia mais companheiro cotidiano, na culpa que não quer sarar, na mãe que não se perdoa por não ser melhor, nas mães que não conseguem viver depois de perder seu filho pra bala, daquelas que nem existem para a sociedade pois estão atrás das grades, e as vezes nem processo consta nos almoxarifados podres da Justiça Brasileira. Mulheres Provisórias.
Passei muito tempo achando que só a nossa autoorganização seria suficiente para a superação deste Patriarcado racista, xenófobo, lesbofóbico, perigoso, melindroso que nos cerca nas relações mais cotidianas. Mas estou me convencendo que não é justo que continuemos sozinhas nessa jornada. Sei que sozinhas conquistamos muito, muito mesmo. E aí preciso falar sim do que estamos produzindo apesar de tudo.
Começo com o exemplo de Ellen Johnson Sirleaf: quem a conheceu como primeira mulher presidenta da República no continente africando, liderando a República da Libéria, talvez não saiba que a economista foi obrigada a se casar aos 16 anos com um homem que praticou abusos durante todo o casamento. Se de um lado, homens brancos vêm projetando muros da vergonha, para separar povos e territórios, como foi o caso de Berlim e é o caso dos Estados Unidos, preciso falar que na Índia, cerca de cinco milhões de mulheres construíram um muro da solidariedade em protesto à proibição de duas mulheres entrar no templo sagrado por estar em período menstrual. Preciso falar das mulheres Manauaras que já começaram o ano lutando contra o feminicídio no Amazonas. Preciso falar de Conceição Evaristo e de sua capacidade de curar nossas feridas com palavras, assim como o teve Maria Carolina de Jesus. Preciso falar de Beatriz Nascimento, uma mulher central na luta contra o racismo no Brasil, historiadora, nordestina, sergipana, que também morreu pelas mãos de um homem.
Pois agora acho que temos que bater na tecla M de Masculinidade Tóxica, tenho me dedicado a entender isso, pois não é possível que nossos irmãos negros continuem comungando com a face feminicida do Estado genocida. Esqueci de falar para vocês que quando penso enquanto mulher, só sei pensar enquanto mulher negra e pobre. Às vezes é preciso lembrar que também somos mulheres, mas não sei ser outra forma de mulher que não essa. Também não me sinto no direito de falar pelas mulheres brancas e ricas pois nunca estive neste lugar. E neste sentido, a partir de uma reflexão mais ampla de emancipação do povo negro, precisamos convidar os homens negros a fazer de forma séria o debate sobre a sua masculinidade. Afinal, vocês também estão morrendo disso, meu caro. Como se não bastasse o Estado Policial que os executa, cada dia mais vocês também são acometidos de doenças psicosomáticas, câncer, depressão e um alto índice de suicídio, tudo isso porque vocês continuam topando este projeto de degradação da vossa humanidade. O mundo também insiste em nos desumanizar, mas quando foi que vocês viram a notícia de uma preta matando outra? Minimamente nós estamos nos cuidando, na medida do impossível.
Nossa vida é atravessada de farpas, mas a alegria de olhar pro lado e contar com a outra é inexplicável. Engraçado que essa semana entrei em contato com uma amiga de outra cidade para que pudesse fazer companhia a outra amiga que estava sozinha no hospital depois de uma infecção pós aborto mal sucedido, fruto de uma gravidez indesejada provocada por “Stealthing” (quando o homem tira a camisinha durante o ato sexual sem consentimento da parceira) – o que já é tipificado como crime correlato ao estupro em países como a Suíça, mas segue como prática silenciosa e naturalizada aqui no Brasil. Interessante que essa outra amiga a quem eu recorri, por sua vez, está acolhendo uma prima que foi vítima de uma tentativa de feminicídio em outra cidade e está escondida, tentando recomeçar longe de seu lugar. Isso sem falar na solidão das mães, e de tantas companheiras que veem amargando da cruel assimetria na divisão do cuidado com os filhos, sobrecarregadas, deprimidas, e ainda assim, resilientes no ato de amar e proteger suas crias.
Pois acho que já deu, por aqui. Fomos todas para a rua no dia 8, em manifestação política. Mas vamos todos os dias. Basta passar nas estações de ônibus antes das 7 da manhã e depois das 10 da noite para ver a cara do trabalho ambulante no Brasil: são mulheres! Não aguentamos mais apenas resistir, queremos ter o direito a ser felizes, a não pensar em nada, queremos ser leves. Mas enquanto isso for um privilégio, continuaremos vestindo nossas capas de duras na queda, enfrentando o Exército, o Narcotráfico, o Juiz escroto que manda algemar advogada, o presidente que corta direitos e diz que merecemos ser estupradas, o marido que nunca admite seus erros, o pai dos filhos que acha que se compra amor com dinheiro, o companheiro de luta que corre na frente pra chegar primeiro. Seguiremos enfrentando o absurdo e a necessidade de ser mulher, assumindo a responsabilidade de livrar a nossa pele e a de vocês, de preservar a nossa ancestralidade, de dar algum sentido a tanto sofrimento e renúncia que somos submetidas desde muito. Em marcha, insubmissas, contra o machismo, contra o racismo, pelo bem viver.
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