Há o gesto tão significativo e conhecido de, às costas de um/a negro/a, esfregar rapidamente e em vai e vem o indicador direito sobre o dorso do antebraço esquerdo, ou vice-versa. Move-se o dedo ali, repetidamente, sobre um traço imaginário quase nunca maior do que cinco ou dez centímetros, como se, ao mesmo tempo, quisesse mostrar ou apagar. A cor. Frisar a cor, salientar a cor, diferenciar a cor; levantar a fronteira entre o nós (brancos) e o eles (negros). Vi esse gesto dizer o indizível duas ou três vezes, em ambientes nos quais me consideraram não-negra o suficiente para ser cúmplice. Porque este é um gesto que busca a solidariedade, o esboço de um meio sorriso, a troca de olhares de entendimento, o leve balançar de cabeças em uníssono “ele/a é negro/a; esperar o quê, né?”. Assim justifica-se uma atitude ou a falta dela, um gesto, um ato, uma fala, um tipo de comportamento que foi julgado tendo como base a cor. Do outro. Porque esse tipo de código racial, de interação silenciosa, reforça a coesão e a posição do grupo branco, que não vê a cor em si, mas no outro. Porque as pessoas brancas sempre tiveram todo o controle sobre a definição de si mesmos e, por consequência, dos outros, dos não-brancos. Aponta-se para si, interage-se com a própria pele, mas quer falar do outro, daquele que tem cor e raça. E porque raça é um conceito aplicado apenas aos não-brancos, e os brancos não são vistos ou nomeados em termos raciais, eles são considerados padrão de seres humanos. Lugar de poder a partir do qual podem falar por toda a humanidade, porque são “apenas” humanos. Tomando esse lugar, conferem ao negro, ao racializado, a concessão de que fale apenas por e para sua própria raça. Por isso alguns brancos, ao ouvirem um negro falar por e para toda a humanidade, emitindo opiniões das quais discorda, ao invés ou antes de refutá-las, partem para a desumanização: macaco, anta.
Pessoas brancas são muito bem representadas: nos programas de TV, nas revistas, na publicidade, nas artes, nos brinquedos, na academia, nos empregos de destaque, nos governos etc. Por isso é fácil cair na confortável armadilha de não se verem ou não se sentirem representados por e representando brancos, mas apenas pessoas. Em Black Looks: Race and Representation, bell hooks fala do espanto e da raiva que alguns brancos sentem quando sua branquitude, e não sua universalidade, é apontada por não-brancos:
“Geralmente a ira deles emerge porque acreditam que todos os modos de ver que salientam a diferença subvertem a crença liberal numa subjetividade universal (nós somos todos apenas pessoas) que eles acreditam que fará o racismo aparecer. Eles tem um profundo investimento emocional no mito da “igualdade”, mesmo que suas ações reflitam a primazia da branquitude como um signo informando quem eles são e como eles pensam.”
Quem eles são? O que eles pensam? Sim, há boas e valorosas exceções. Há brancos que sabem que são brancos, sabem dos privilégios inerentes a essa condição e lutam para que os não-brancos também os tenham. Mas os que, por cegueira ou inocência, por ignorância ou má fé, insistem em ser vistos e tratados como “apenas pessoas”, pregando o “somos todos iguais” “somos todos de uma só raça: a raça humana”, sem a preocupação de por quem e para quem o conceito de “raça humana” foi construído, têm uma característica em comum: eles têm medo e tentam, a todo custo, disseminar esse medo.
Quantas vezes já não ouvimos ou lemos frases como: “tenho medo de que as cotas levem ódio racial para as universidades”, “tenho medo de que o Brasil se transforme em uma nova Ruanda – ou África do Sul, ou EUA”, “tenho medo de que o critério racial das cotas divida o Brasil em dois”, “tenho medo de que os rolezinhos transformem os shoppings em praças de guerra”. E por aí vai. Mas me parece que esses medos são apenas fachada para os verdadeiros, os mais profundos, aqueles que ainda não têm ou não precisam ter nome. Porque é desejável que fiquem na ordem do indizível, partilhado em códigos para iniciados que querem continuar escolhendo quem também pode ser iniciado e, na condição de representantes naturais da “raça humana”, falar e decidir pelos que não o são. Para isso, é necessário que muitos tenham medo.
Porque o medo está entre as emoções mais poderosas. Ele paralisa, fecha os olhos e contrai a garganta, interrompe o pensamento, faz com que queiramos que as coisas permaneçam exatamente como sempre estiveram. Mudar pra que, se já sabemos lidar com o assim? Incluir o outro pra que, se não sabemos o que ele vai fazer no mundo com o qual já nos acostumamos e está bom pra nós? É disso também que o racismo se alimenta: do medo que silencia. Principalmente se for medo coletivo. Para entendê-lo e combatê-lo é preciso perder o medo de falar sobre ele. Falar mais. Falar mais alto. Falar de novo. E de novo. E mais. E alto. Pegar o dedo indicador que até então tem servido para codificá-lo sobre a pele branca, às escondidas dos negros, e usá-lo para apontar os problemas, as dúvidas, os ressentimentos, as mágoas, as culpas fundadas e infundadas, a neutralidade. E porque racismo, sempre envolto em tanto medo, é assunto sobre o qual estamos apenas engatinhando, poderíamos iniciar nossa conversa nos fazendo em voz alta uma pergunta bastante simples, mas corajosa:
– Atrás de que medo escondo meu racismo?
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Nota: Algumas ideias para esse texto elaboradas a partir da leitura do livro White, de Richard Dyer.