Durante a manifestação por respeito e justiça por Moïse Kabagambe, percebemos que nossa presença naquele espaço incomodava mais do que imaginamos. Não somos ingênuas, sabemos que a gente incomoda, mas aquela não era uma manifestação somente por justiça, afinal, pedimos justiça todos os dias. Aquela manifestação exigia uma resposta contundente contra a barbárie, contra a desumanidade.
Nós nos encontramos numa estação do Metrô e seguimos para a manifestação por respeito e justiça diante do assassinato brutal do jovem congolês, Moïse Kabagambe, espancado até a morte por cobrar R$ 200,00 de diárias não pagas por seu trabalho em quiosque na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro. Assim que chegamos, observamos que havia bastante gente – fruto da mobilização de mais de 200 organizações, grupos, coletivos e projetos. Deu um afago no coração. Quase como dizer a nós mesmas que nem tudo estava perdido, mesmo com aquela tensão no ar de que algo poderia sair dos trilhos. Durante a semana, circularam notícias de que a manifestação seria acompanhada pelo Batalhão de Choque da Polícia Militar que, pra falar a verdade, não é nosso melhor amigo.
Em meio a discursos emocionantes e palavras de ordem, percebemos que nossos corpos, nosso caminhar, nossa presença naquele espaço incomodava mais do que imaginamos. Não sejamos ingênuas, sabemos que a gente incomoda, mas aquela não era uma manifestação somente por justiça, afinal, pedimos justiça todos os dias. A importância daquela manifestação foi exigir uma resposta contundente contra a barbárie, contra a desumanidade. Vimos que nossa presença aborrecia quem se exercitava (a pé ou de bicicleta) e se deslocava de carro, portanto, o mínimo de humanidade não estava disponível para nós.
Sábado foi um dia de muito sol no Rio de Janeiro e imaginamos que as praias estivessem lotadas. Nossos olhos viram uma praia de-ser-ta. Entendemos que aquele vazio representava um temor à nossa presença. Absurdo! Ali estavam pessoas que são sistematicamente vítimas estruturais desse país racista. Só pra se ter uma ideia, em poucos dias, uma vereadora foi acusada por deputado de ter relações com o tráfico de drogas; um professor foi à justiça porque seus estudantes foram acusados de furto; um trabalhador, pegando a chave de casa, foi assassinado por um integrante da Marinha do Brasil; um morador de favela foi detido quando ia comprar pão para um churrasco e dias depois foi liberado porque a polícia reconheceu que havia dúvidas razoáveis quanto ao reconhecimento. Dias depois?!
‘São todos pretos’
Somos nós, as pessoas ameaçadas, assassinadas, presas, violentadas. Somos nós que deveríamos tremer dos pés à cabeça quando a gente vê um branco. Na verdade, a gente treme mesmo porque a gente não sabe em que encrenca ele pode nos colocar. Mas mantemos a altivez e encaramos de frente porque sabemos que a gente não é ameaça, cara, a gente é vítima. Como não tinha ninguém na areia? Como essas pessoas estavam com medo da gente? Como disse certa vez Lélia Gonzalez, parece que a gente não chegou nesse estado de coisas; parece que a gente nunca saiu dele.
E para encerrar a cota de escatologia da semana (!), um comunicador, sem qualquer pudor, defendeu a existência de um partido nazista no Brasil, amparado por lei. O homem nem ficou corado. Um outro comunicador se despediu de um telejornal com uma saudação nazista. Ele riu!
Os ataques contra nós estão mais desavergonhados e estamos nos desgastando imensamente defendendo questões que já estavam pacificadas. No fim de janeiro, por exemplo, tivemos que nos articular contra um veículo de imprensa que publicou um texto que, além de muuuuuuuuuuuuuuiiiiiiiiiiiiittooooooooooooo ruim em termos de escrita, defendia abertamente o racismo reverso. Só a branquitude tem esse privilégio! Esse texto não seria publicado nem no jornal do grêmio da minha escola primária, quiçá em jornal de grande circulação. Todo preto universitário (não precisa ser acadêmico e, sim ter bom senso) sabe que o texto não seria aceito nem como trabalho final de disciplina. Se escrevêssemos um texto como aquele, só que falando da branquitude, toda vírgula seria questionada.
Na volta da manifestação, pegamos um carro de plataforma. O motorista reclamou do trânsito e foi rechaçado por nós. Dissemos que era uma manifestação legítima e todos deveriam compreender o pedido de justiça que estava envolvido naquele ato. Como já dissemos, o rosto nem cora! Mas a boca insistente é rápida para deslegitimar a manifestação e a vítima falando que ouviu dizer que o quiosque seria destruído e que a vítima provocou essa situação.
Óbvio que ninguém quer virar memorial. Eu, particularmente, até acho que os dois quiosques deveriam ir pro chão mesmo, e aquele lugar só deveria ter uma placa sobre o que a desumanização pode produzir. Porém, democracia e articulação admitem a existência de outros resultados que podem ser mais relevantes à sociedade, especialmente no tocante à preservação da memória do jovem, enfrentamento a situações de pobreza e outras vulnerações sociais.
2022 é um ano chave, senhoras, não esqueçam! A gente dominante desse país tem um plano contra nós, mas o plano que nós temos para esse país sempre envolveu vida e liberdade. É hora de articular e saber com quem efetivamente a gente está se articulando. É hora de se mobilizar, mas também é preciso saber quem realmente caminha conosco. Consciência racial não se aprende com o nascimento. Não adianta estar em espaços de privilégio e fazer o jogo da branquitude. Nossa representação nas Câmaras, Assembleias, nos órgãos do Poder Executivo e do Judiciário, não reflete nem o nosso tamanho, nem nossa valorosa contribuição na construção desse país. Quando a gente está perto de chegar aos 10%, a branquitude nos arrasta de volta aos 3%.
Amigas, companheiras, que o nosso plano seja permanecer de pé!
Na página do IPCN você encontra mais informações sobre a manifestação.