A ditadura do cabelo liso é uma construção social e não um gosto, uma opção individual de quem quer mudar ou de quem realmente acha mais fácil e bonito ter um cabelo desse tipo.
Essa construção social nasce enraizada ao preconceito racial e passa a fazer parte da destruição da autoestima das meninas negras, que se tornam mulheres que nem conhecem seu verdadeiro cabelo por, desde cedo, terem aprendido a negá-lo.
Cabelo longo está associado à feminilidade, assim como cabelo “ruim” está associado à negritude. São construções sociais tão repetidas que a gente passa a ver essas associações como naturais. As atitudes racistas direcionadas ao cabelo crespo estão tão naturalizadas que as pessoas se sentem muito confortáveis em chamar um cabelo de “duro” ou “ruim”, para se referirem ao cabelo mais crespo, daqueles que não formam cachos.
Mas, o que estamos vendo hoje é o grande movimento de mulheres negras, retornando ao cabelo crespo natural e o que isso significa? Moda? Escolha? Revolta? Ato político? Auto Afirmação?
Todas as respostas, exceto a primeira, estão corretas. Claro que a mídia, responsável pela manutenção da construção social do liso, vai dizer e repetir que é moda, que um dia vai passar, que é estilo e que podemos escolher alisar amanhã ou semana que vem. Mas NÃO, nós dizemos não a mais essa manipulação de um movimento que é nosso e que revela o nosso basta, para séculos de imposição de uma beleza que não nos pertence, que nos mutila, que nos mata, que nega nossos direitos.
Revoltamos-nos sim, com a crueldade de nos ensinarem que quem somos não presta, que nascemos fora do padrão, que não somos seres adequadas, com nossos cabelos, para bons empregos, boas festas e que devemos passar por seções e mais seções de torturas para entrarmos nesse padrão e sermos aceitas socialmente.
Com o advento da internet e das redes sociais, bem como das mídias alternativas, mulheres negras têm a oportunidade de trocarem experiências, de fortalecerem umas as outras nesse movimento de retorno as suas raízes capilares. No artigo, escrito com Ivy Guedes faço uma análise desse movimento, partindo da análise do grupo que modero no facebook, o Vicio Cacheado. Analisamos o quanto um grupo pode ser referência na vida de mais de 28 mil mulheres e o quanto esse momento e movimento tem se tornado histórico.
Realizamos encontros mensais em Salvador/Bahia onde colocamos as discussões em torno do que significa assumir seu cabelo natural, o que muda em sua vida a partir desse momento em que você encara uma entrevista de emprego com seu cabelo no alto, armado, ouriçado. Isso é Ato Político. Por que o seu cabelo fala por você e ele diz bem claramente que nós ESCOLHEMOS, enfrentar o racismo de frente.
Em nossos encontros, através dos depoimentos, conhecemos as histórias dessas mulheres, histórias de dor, muito parecidas, pois todas, fruto do racismo, mas sempre com algum elemento particular ou peculiar, que nos emociona, nos deixam perplexas e nos fazem ter a certeza de que aqueles encontros, de que aquelas rodas de conversas mensais são um ato político. Apoiamos umas as outras, enxugamos suas lágrimas e trocamos palavras de força, de apoio e de resistência acima de tudo. Passar por esse processo é doloroso e revelador ao mesmo tempo por que muitas mulheres se descobrem lindas como nunca antes haviam imaginado ser e doloroso porque o racismo começa a se mostrar cada vez mais cruel a partir do momento que você o encara e diz NÃO para ele. Bell Hooks, em Alisando nosso Cabelo, nos lembra que esse mesmo movimento aconteceu nos EUA, nos anos 60 e 70, e também chegou ao Brasil lembram? Mas aqui, a discussão do político não existiu como existe hoje.
Nós queremos e pretendemos a revolução que Bell Hooks diz não ter acontecido nos EUA, mesmo com a influência do Panteras Negras, fazendo com que as pessoas voltassem a alisar seus cabelos.
Assumir e usar o cabelo crespo natural e se conscientizar de que esse seu ato é um ato político, pois ele enfrenta todo um sistema racista e sexista. Revelar para esse sistema que ele está com os dias históricos dele contados. Esse é o papel de quem trabalha e escreve diariamente para esse movimento, fortalecer nossas lutas pelo retorno e manutenção de quem somos, de nossas raízes.
Assim, vamos descolonizar as mentes, fazer histórias para os mais novos que virão e essa palavra MODA não vai existir mais nem em nosso imaginário.
É lindo todo esse movimento e eu me sinto cada vez mais fortalecida e grata por fazer parte dele trabalhando ativamente.
Espero que todas e todos se conscientizem disso e não reproduzam Moda, dentro do nosso movimento.
Imagem destacada: Miss Black Power/ RJ – Mercado Di Preta