O dia do nascimento é um acontecimento especial. A criação é realmente uma obra esplêndida e a vida humana é capaz de trazer a este mundo várias estreias, incontáveis nascimentos. Os clichês mais lindos como o nascimento de um passarinho, a rosa que brota após semanas no sol. Nascer é contemplação.
Para nós, mulheres de religiões de matriz africana, o nascimento para Orixás, Vonduns e Inquices é intradutível, ou seja, não é possível (d)escrever sobre. Não há palavra que diga, não há linguagem possível.
Mas hoje é um dia simbolicamente marcado por vários nascimentos. Ou re-nascimentos. Esses dias, no processo de pensar e repensar as coisas, me perguntaram: qual é a data de aniversário de Blogueiras Negras? Uma pergunta simples, mas que suscita um monte de camadas como resposta.
Como boas feministas negras que somos, acreditamos que não há uma história única. Não existe uma verdade universal, ou história oficial: existem pontos de vistas, histórias diferentes acontecendo ao mesmo tempo, com diferentes narrativas e jeitos de contar. A história do dia em que nascemos tem vários começos e meios, mas o que vou contar aqui passa pela data de hoje.
Foi num 21 de março. O ano era 2013.
A nossa segunda Blogagem Coletiva acontecia, pelo Dia Internacional Pela Eliminação da Discriminação Racial. Para quem está nascendo hoje, Blogagem Coletiva era o nome que se dava a uma ação conjunta de pessoas que tinham blog. Essa ação acontecia mobilizada por diferentes grupos, sobre diferentes temas, e geralmente os blogueiros subiam seus textos no mesmo dia, usando hiperlinks, hashtags e imagens em comum.
Naquele ano, escrevi um texto cujo título era “Mais um dia pra cantar” que dentre outras coisas citava o texto de Jeane Calligari sobre o caso de Racismo no São Paulo Fashion Week, protagonizado pro Ronaldo Fraga, e terminava com duas músicas, sendo uma delas Slogans, de Bob Marley.
Essa blogagem coletiva juntou mais de 20 textos de diferentes autoras e consolidou a nossa plataforma – que ainda era um repositório wordpress.com – e aqueceu a produção intelectual de mulheres negras na internet, quando percebemos que naquele mês, nos dias subsequentes ao 21 de março de 2013, as mulheres negras continuaram a escrever, dessa vez sobre a recém-aprovada PEC das Domésticas, sobre os casos de Racismo na UFMG e claro, sobre moda.
Sim, porque uma das verdades é que nascemos depois de uma pergunta feita por Giselli Souza num grupo de discussão de e-mail: Onde estão as blogueiras negras de moda?. Nos aglomeramos naquele emaranhado de discussões feministas e organizamos então as blogagem coletivas.
E como qualquer processo de nascimento, nós, naquele momento, não sabíamos onde chegaríamos. Mal sabíamos que o nosso destino era andar e chegar tão longe! Os sinais lá atrás, quando olhamos hoje, já apontavam os caminhos; mas nada nem ninguém nos faria acreditar se um passarinho dissesse “Informação para fazer a cabeça é revolucionário!”. A nossa intenção era apenas, e despretensiosamente, juntar textos de mulheres negras que já blogavam para potencializar as escritas e assim reverberar um movimento que já existia.
E assim, nascemos! Dia 21 de março de 2013, dia em que o Massacre de Shaperville completava 53 anos. Hoje, 21 de março de 2023, 10 anos depois, nós re-memoramos e re-nascemos. Escrevemos ainda porque continuamos lutando contra a discriminação racial, mas também contra o racismo religioso.
O governo federal sancionou este ano a Lei 14.519/2023 que institui o 21 de março como sendo também o Dia Nacional das Tradições das Raízes de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé. Como mulheres de axé, essas Blogueiras Negras festejam e se mantém atentas.
Festejamos porque é da nossa natureza a alegria. É do nosso espírito poder ser feliz e comemorar nascimentos e renascimentos. Sim, nós, as Blogueiras Negras, somos mulheres de terreiro de matriz africana; somos filhas de Ketu, Nagô, da Casa da Mina, do Culto Tradicional e honramos os nossos Ancestrais.
E nos mantemos atentas porque vivemos nesta sociedade do ódio à nossa cultura, do ódio à nossa alegria e ethos. Dos olhares perversos e das pedras que caem nos tetos dos nossos Ilês. Ligadas no que ainda nos fere e pode matar nossos semelhantes. E clamamos por Justiça.
Neste 21 de março, retomo a canção que escolhi há 10 anos atrás. Porque continuamos querendo que os hipócritas se calem e nos deixem em paz para sermos livres! “oh, quando seremos livres? // não mais a fala mansa dos hipócritas // não mais a fala doce nos púlpitos”.
Continuamos querendo nascer e renascer, tal qual árvores. Nasceremos e seremos livres, mesmo que os hipócritas não queiram. Seremos felizes e contemplaremos nossos filhos. Todos os dias em que nós nascemos!