Por Jarid Arraes para as Blogueiras Negras
As consequências da segregação social e dos preconceitos têm sido uma das pautas de discussão mais recorrentes entre profissionais das Ciências Psicológicas. Já existem estudos documentados mostrando os efeitos negativos da exposição a intolerância e violência. Não são poucas as vítimas que acabam desenvolvendo o transtorno de estresse pós-traumático: deparar-se com pessoas da mesma idade e sexo que os agressores, encontrar-se em uma situação parecida ou até mesmo escutar os barulhos ou a música que tocava no momento da violência podem se tornar ativadores potenciais de uma crise. Não importa se a violência foi um abuso sexual ou um emprego injustamente perdido: um trauma desse calibre é muito intenso e pode perdurar por uma vida sem jamais ser superado. É preciso trabalhar diariamente para aprender a lidar e conviver com o passado.
Para quem faz parte de algum grupo desfavorecido, é praticamente impossível levar uma vida sem pelo menos alguns episódios de violência. Mulheres negras, especificamente, são alvos cotidianos tanto do racismo institucional quanto da misoginia. Sexo e cor não são características que podem ser omitidas quando conveniente, levando a um tipo de intolerância muito constante: mulheres negras estão expostas em período integral às mais variadas agressões e situações de violência. A menor qualidade de vida das mulheres negras não se dá exclusivamente pela dificuldade e falta de oportunidades para trabalhar, se relacionar ou mesmo transitar pelas ruas; elas também estão incrivelmente sujeitas a crises de depressão ou estresse e outros problemas emocionais.
Não é completamente impossível manter a saúde emocional mesmo sendo vítima de preconceito. Muita gente consegue encarar o preconceito de frente e ser feliz. Embora seja necessário muito esforço para lutar e fortalecer a autoestima, é possível adotar algumas estratégias para manejar o problema. Mas se para algumas pessoas é possível encontrar um hobby, sair com amigos ou mesmo tirar férias para desviar o foco do problema, quem é ativista pelos Direitos Humanos tem muito mais dificuldade para preservar a saúde mental. Mulheres negras e feministas não precisam enfrentar somente o racismo que sofrem, pois acabam lidando no ativismo com infinitas outras situações de injustiça direcionadas a outras pessoas.
Enfrentar os próprios fantasmas já é uma batalha árdua, mas o ativismo político reune essas questões de uma forma massiva. Para quem participa de um movimento social, são muitas notícias, depoimentos e denúncias revoltantes, além de ações e intervenções presenciais que elevam ainda mais a proximidade com o problema. O racismo está sempre presente no dia-a-dia, pois a mulher negra feminista não está em contato somente com os grandes acontecimentos que ganham repercussão na mídia. Ser ativista significa lidar diariamente com depoimentos e pedidos de ajuda de companheiras agredidas e acompanhar portais de notícias ou blogs coletivos com acontecimentos que nem sempre aparecem na tv. Não basta lidar pessoalmente com a intolerância da sociedade: quem é ativista acaba tomando conhecimento de novos casos de violência e discriminação a todo momento. E é muito mais difícil tentar “esquecer os problemas” quando você tem acesso ao número total de estupros ou mortes só na última semana – uma informação que talvez fosse preferível não saber.
Não são poucas as militantes que relatam estados agudos de depressão, perda de energia e falta de motivação com a vida. Muitas vezes isso pode levar à fraqueza e vulnerablidade física, abrindo espaço para outras doenças. Parte disso acontece porque os próprios sofrimentos íntimos acabam sendo mais aguçados; mas o maior vilão é o confronto sem pausas com a realidade. Várias ativistas chegam a ter pensamentos suicidas devido a tamanha falta de otimismo com a situação. E não é difícil entender o motivo: como não perder as esperanças e não se esgotar completamente quando a intolerância vive a bater na sua porta?
Fazer ativismo não é fácil – é preciso fortalecimento e união para não acabar potencializando sentimentos nocivos como o desespero ou a raiva. Grupos e comunidades ativistas, sejam presenciais ou pela internet, precisam oferecer suporte uns aos outros. Todo mundo precisa de apoio e compreensão, além da certeza do acolhimento. As lutas diárias são pesadas e em grande quantidade, mas com força coletiva e união, todas as pessoas podem encontrar ânimo para vencê-las. Afinal, a saúde individual de cada militante é tão importante quanto o bem estar dos grupos pelos quais lutamos.
Jarid Arraes é educadora sexual, especialista em sex toys, escreve no Mulher Dialética e no Guia Erógeno.
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20 comments
Grata pelo texto ! Podia me indicar uma bibliografia que associe a experiência de discriminação ao stress pós traumático ? Gratidao
Eu tenho uma repudia muito grande ao racismo, de maneira que eu nem sei como explicar, apenas só consigo agir…
Mas porquê eu odeio tanto o racismo, apesar de ler história e ter motivos para tal?
Tenho um grande amigo, casado, pai de 2 filhos, teve uma depressão profunda ( com ajuda,lutou 5 anos para viver),
afetando o *sistema límbico, fez com que os hormônios e organismo lhe “presenteasse” com problemas nas pernas e hoje ele anda com auxílio de moletas, tentou suicídio mas foi impedido, felizmente.Porquê?
*( sistema límbico é a unidade responsável pelas emoções e comportamentos sociais e outras informações )
Em um estabelecimento, um cliente não escondeu o nojo de tocar-lhes nas mãos (gesto informal comum) dele, por causa da cor negra, tocou forçosamente e limpou as mãos…
O cérebro, o mais importante órgão humano, rapidamente reagiu, infelizmente, trauma. Temos uma medula espinhal que através dela o cérebro controla nossas funções motoras através de comunicação elétricas. Muitas vezes você pode sentir dores fortes musculares e não ser nada, apenas o stress ou angústia ansiedades e tal, devido a transmissão irregular dessas funções fisiológicas.
Apesar das pernas e um tipo de mancha que apareceu em todo o seu corpo por causa da depressão profunda, ele é uma das pessoas mais incríveis que já conheci, e mesmo após as manchas, eu toco nas mãos dele dou um abraço quando o vejo, eu sei que não é contagioso aquelas manchas, agora imagine quando ele estava bem , corpo sadio e alguém mostra ter nojo em tocar nas mãos em comprimento informal, por causa de sua cor?
Apesar de eu não ser religioso, hoje ele vive bem, se tornou um ancião de uma congregação chamada Testemunhas de jeová, continua sendo o mesmo ser humano maravilhoso que sempre foi!
” Grupos e comunidades ativistas, sejam presenciais ou pela internet, precisam oferecer suporte uns aos outros.”
Está aí um chamamento em seu texto que assino embaixo. No grupo que temos na iniciativa presencial e na internet chamada Sos Racismo Brasil, sempre nos deparamos nos caso “aflorados” de racismo, com quadros causadores de grande impactos psíquicos novos, ou que são destampados diante de uma agressão mais direta, como a recusa de um emprego, um xingamento ou agressão física racial e/ou de gênero,
Acontece que o racismo está todo tempo presente e os “casos” diretos, são só a ponta do iceberg que aparecem.
Nestes dois anos de nossa atividade no Brasil, corroborando o que você apela para que troquemos suportes entre nós, em 100% dos casos, não só as vítimas diretas como a/os ativistas que a/os acompanham, necessitam de um constante suporte emocional e psíquico para segurarem a “barra pesada”, do confronto consigo mesmo, depois que o “assunto” sai da mídia ou das redes sociais. Pois é nesse momento em que a ficha cai, que as pessoas mais se sentem vulneráveis, como se a agressão sofrida, tivesse deixado lá um veneninho, que pode ser reativado a cada momento.
Todo o movimento negro brasileiro está ainda engatinhando nesta área, temos que reconhecer. Ser ativista não é ser super-humana/o. estar empoderada/o não significa não poder escorregar de vez em quando.
Felizmente também em 100% dos casos que atendemos nos últimos 2 anos, quando as vítimas de racismo, ou o/as ativistas, precisaram de apoio emocional e “manifestaram” que precisavam socorro, encontramos pessoas com sabedoria profissional, que puderam esta ao lado das pessoas nos momentos cruciais, que podem decidir se as pessoas vão adiante, ou se vão desistir por um tempo ou prá sempre.
Por tudo isto, Jarid Arraes, seu apelo bate fundo em nossos corações. Vamos trocar informações e nos dar suportes. Tem muita gente com experiência profissional de vida, que pode ajudar quem está ao lado.
Essa materia só resp minhas questoes,é muito dificil ver a luz qdo se esta no olho do furacão…sou mãe,hje me descobri cantora e ativista e qto mais se adquiri conhecimento,mais ficamos revoltadas….sofri racismo,abuso e violencia…e acreditem casei…sofri o mesmo no casamento e estou conseguindo sair dessa situaçao tbm.Tudo é muito mais dificil sim…ja tive crises de anciedade…..falta de coragem pra levantar da cama.Mas minha luta,minha musica e exemplos de tantas outras me motivam.Por isso tnho certeza q escolhi o caminho certo…obgada muita força,e luz pra todas nós!!!!
Quem nunca passou por isso diz que nós lamentamos muito, nos vitimamos demais, é fácil falar, ouvi um dia desses de uma colega branca do trabalho que nós negros nunca esquecemos da escravidão, dá pra acreditar.
Eu sei que tenho problemas de autoestima e isso me causa problemas de ansiedade extrema, estresse por não conseguir me adequar a trabalho nenhum por ser negra de alma branca como já ouvi de certas pessoas que não me toleram, e além do mais por ser pós graduada e conseguir apenas subempregos tenho dificuldade, hoje estou desempregada e pasmem sem coragem e ânimo para voltar ao mercado.que Deus me ajude.,
Também estou co dificuldade de arrumar emprego há tempos, cansei de ser especulada sobre isso e ouvir gente dizendo coisas que não sabe….uma mulher chegou a me questionar pq eu nunca tinha trabalhado até meus 32 anos, mesmo eu tendo contado de uma rápida experiência não registrada, mas ela desconsiderou, depois disse que eu parecia querer forçar pra conseguir trampo. Pra ela eu estava errada das duas formas! Era uma vaga pra cafeteria de um shopping perto de onde eu moro… nem precisa dizer q não me contrataram, que lá pedia experiência, mas segundo a gerente, se a pessoa mesmo sem experiência tivesse vontade, eles poderiam dar uma chance, mas eu mostrei isso, não adiantou. Não ei se foi racismo, não dá pra provar, mas a mulher era loira (branca) e parecia ter tipo implicância pela minha falta de experiência e por achar que eu estava ansiosa demais e estaria forçando a barra (mas como não ficar ansiosa, se desde 2001, quando ei tinha 19 anos procuro e NADA acho??) E agora meu mais novo impasse é nos admissionais; em 2009 ao tentar o telemarketing fui dispensada por uma perda auditiva,e agora, pra atendente de um restaurante no mesmo shopping o médico (um velho) tá me segurando lá primeiro por ter pedido uma avaliação oftalmológica, entreguei, ele aceitou, agora cismou com a anemia diagnosticada em um dos exames, mas eu mesmo em tratamento, não me sinto inapta, mas tenho um certo receio de que continue fazendo exigências, me mantendo pendente, já n]ao sei mais o que fazer!! E pra ajudar, a gerente da loja, mesmo tendo me aceitado, achava q meu curriculo era muito bom pra vaga. Me senti confortável pois lá trabalham mais 3 pessoas negras (acho q 2 rapazes e uma moça, se não em engano) então, nesse ponto ela não tem preconceito. Sobre a cafeteria não posso afirmar nada, não vi nenhum negro lá. Pior que ficar sem trampo está me fazendo ficar acomodada com a suposta
“boa vida” e eu não gostaria que isso acontecesse, mas com o perdão da expressão, essa dificuldade toda já está enchendo a porra do meu saco!! Podia fazer um tópico sobre a dificuldade de arrumar e manter emprego devido a discriminação sofrida por vcs.
Ótimo texto! Racismo é uma merda!
Escrevi um texto sobre o que passei na minha infância e, sinceramente, vou precisar de mais uns 2, 3 posts para escrever tudo o que me aconteceu. Mas são por esses motivos que devemos lutar e lutar. [email protected]!
Link pro texto: http://rafinhabrites.blogspot.com.br/2013/07/racismo-infancia-parte-i.html
Nossa, sua história parece bastante com a minha, seu texto é bacana, ser um negro de classe média é muito complicado quando se é criança mesmo porque vc perde o vínculo com muito da cultura negra e ao mesmo tempo não é parte da cultura branca que te cerca… Ainda bem que a gente cresce e aparece 😉
Mas tava pensando nisso em relação ao filhos que pretendo ter um dia, como vou escolher uma escola pra eles, um bairro, etc?! Volta e meia penso a respeito…
Olá Jarid, quando li seu texto, pensei: Isso!!! Sofri abuso sexual na infância e apesar da força e do “Bola pra frente”, me pego entrando em depressão ás vezes… por mais força que se tenha. Isso é uma luta diária e que sei que nunca terminará, apesar de não ser negra por fora, sou de família humilde, o que pra muitas pessoas eh a mesma coisa. Por dentro, sou tão negra ou vermelha ou amarela que qualquer uma. Adoro esse blog, me fala muito mais que muitos sites por ai. Beijo.
Lendo essa matéria pude de certa forma, perceber o quanto a frustração que sinto nesse exato momento é algo que atinge a muitas outras mulheres, negras, ativistas e muito bem informadas. Desde a adolescência eu admirava os homens negros, e agora já adulta tive a honra de me relacionar com alguns africanos, porém, o que para mim era tido enquanto valorização e respeito da cultura africana e afro-brasileira acabou como utopia. Pude perceber que a chamada “ideologia do branqueamento brasileiro” é tão forte que consegue convencer um estrangeiro de origem africana de que estampar a fotografia de uma mulher branca (loira) em seu facebook a cada instante por todos os lugares por onde vão é sinônimo de profissional bem sucedido, “homem pegador”. Exibir um troféu não fará de alguém necessariamente um vencedor!!!! Quanto ao meu interesse pela cultura africana, esse vai continuar. Pagarei cada real por cursos oferecidos com a temática assim como já o fazia, para mim é um ideal de vida.
caiu como uma ‘luva’…as consequências psíquicas advindas do racismo tem outro peso para nós mulheres negras e ter a consciência disso nos torna mais fortes e…menos sós …Parabéns!
Como militante negra feminista, atualmente trabalhando na gestão de políticas para as mulheres, me senti contemplada com o texto e fiz algumas reflexões do quanto precisamos ser fortes para vencer diariamente as violências aqui pautadas… Parabéns pelo texto!
Muito obrigada pelos comentários, gente querida. É uma felicidade poder contribuir.
Texto profundamente lúcido, franco e esclarecedor.
Obrigada,
Estava a ler o tema do Stress Pós Traumático em activistas de Direitos Humanos.
Considerando MIcroagressões cotidianas a descendentes de africanos e imigrantes, seu artigo fez muito sentido para mim.
Agradecida.
é duro, enlouquecedor, só as mulheres pretas que militam sabe o quanto a barra é pesada, sabem o quanto sofremos em silêncio e em público muitas vezes sem o apoio de pares. Mas militar é o que nos mantem vivas, nos move a mudar o mundo. Avante, mulheres pretas!!
Jariid, obrigada pelo texto. estou fazendo uma dissertação que discute relações raciais e racismo e estou bastante deprimida nesse momento…caiu como uma luva. Vou me fortalecer para poder voltar à luta! Já não me sinto tão sozinha : )
Lindo seu texto, Jarid. Você tem toda razao. Amei seu texto:-)
Adoro ler os textos publicados aqui no Blogueiras Negras e em especial o texto da Jarid Arraes, porque acho que estamos dando o primeiro passo para combater o racismo que é reconhecer que ele existe, falar sobre ele, ler sobre as experiências das companheiras, refletir e apontar soluções juntas. Isso é massa porque muitas vezes me sinto só e desacreditada porque muita gente fala que o que sofro não é racismo, discriminação ou preconceito que as coisas são assim mesmo e que sou eu que exagero ou vejo coisas aonde não existem. Parabéns Jarid Arraes e parabéns Blogueiras Negras! Juntas somos cada vez mais fortes!