Por um feminismo interseccional e inclusivo

Hoje em dia felizmente temos visto um expressivo aumento no número de mulheres que se  firmam feministas, algo que não era muito comum há bem pouco tempo. Inclusive temos observado algumas mudanças no cenário social, como medidas que ampliam o significado do estupro, incluindo o assédio sexual, por exemplo, e reforçam a necessidade de combater o feminicídio, assassinato de mulheres, protegendo-as e punindo os agressores.

É interessante notar que há diversas vertentes do movimento feminista, baseadas em diferentes perspectivas sobre o que é ser mulher que se desdobraram principalmente a partir da década de 60. Mas, independente da vertente que se siga, é importante nos perguntarmos: será que meu feminismo é, de fato, inclusivo, representando a pluralidade de mulheres (brancas, negras, transsexuais, heterossexuais, bissexuais, magras, obesas, donas de casa, mulheres que trabalham fora de casa etc.)?

Essa pergunta é importante para instigar o debate sobre temas como racismo, homofobia, transfobia, gordofobia, preconceito social, entre outros. Muitas pessoas que se afirmam feministas oprimem outras pessoas com base em marcadores da diferença como cor, classe social e orientação sexual, por exemplo, daí a necessidade de se realizar uma autoanálise e se perguntar se as causas feministas que abraçamos são inclusivas ou excludentes, o que estaria perpetuando a desigualdade e mantendo determinados grupos sociais na marginalidade.

O feminismo interseccional, também chamado de feminismo negro, surgiu a partir da necessidade das feministas negras de superar as barreiras que lhes eram impostas na sociedade.*

Esse termo surgiu para dar conta de uma série de opressões a que as mulheres negras eram submetidas simultaneamente como machismo, racismo e preconceito de classe, uma vez que elas ocupavam a base social com trabalhos mal pagos e sem condições de trabalho apropriadas. Sendo mulher, negra e pobre, é difícil definir apenas a questão de gênero como um problema, pois a situação era muito mais complexa, uma vez que uma somatória de opressões atinge mulheres com essas especificidades.

Quando o movimento feminista estadunidense emergiu, percebeu-se que as reivindicações feitas não atendiam a todas as mulheres. Por exemplo, enquanto as mulheres brancas da classe média lutavam para ingressar no mercado de trabalho e para ter direito ao próprio corpo, as mulheres negras trabalhavam em subempregos e muitas vezes eram estupradas por seus patrões. No entanto, essas mulheres continuaram na marginalidade e suas necessidades não foram levadas em consideração pelo movimento feminista da época, que estava voltado para as mulheres brancas da classe média que eram escolarizadas e poderiam ocupar melhores posições de trabalho.

Sendo assim, diante desse contexto, as mulheres negras se organizaram e elencaram suas reivindicações. No caso do contexto brasileiro, Lélia Gonzalez apontou questões importantes dentro do movimento feminista como combate à discriminação racial, profissionalização, educação de qualidade, direito a melhores condições de trabalho, entre outros. Sueli Carneiro, importante feminista negra na atualidade, aponta em sua obra a necessidade de lutar contra a objetificação da mulher negra, cujo corpo é hiperssexualizado. Já Conceição Evaristo, escritora mineira premiada, questiona a representação do negro de forma lúdica, como se ele não pudesse ser um sujeito intelectual.

Essas autoras e muitas outras caminham na direção do feminismo interseccional, enfatizando a necessidade de combater todas as formas de opressão, não apenas a de gênero. As mulheres são plurais e, portanto, têm vivências diversas, que devem ser encaradas apenas como diferenças, não como mote para desigualdade. Audre Lorde, autora feminista negra e lésbica, diz que nossas diferenças devem ser vistas não como fraquezas, mas devem ser somadas para fortalecer nossa causa, que é uma luta contra o machismo, o racismo, a homofobia, a transfobia, a desigualdade e toda forma de opressão.

Em suma, devemos nos questionar sinceramente e analisar em que medida estamos contribuindo para a libertação de todas as mulheres ou apenas de um determinado segmento social historicamente privilegiado. Não podemos combater o machismo reproduzindo preconceitos de qualquer classe nem silenciando outras mulheres, tirando o seu direito de fala, reduzindo sua luta por acreditar que apenas a questão de gênero é a mais importante.

*Há controvérsias sobre origem do termo e sobre sua aplicação. Feminismo Interseccional não é necessariamente Feminismo Negro.

Imagem de destaque – Telegraph

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