As fronteiras entre academia e movimentos sociais são identificáveis? Qual impacto dos conhecimentos científicos que produzimos para pretos que estão do lado de fora do mundo acadêmico? É possível construir uma agenda de pesquisa negra autônoma nas universidades públicas? A vontade de responder a estas velhas perguntas aumentou após participar do I Encontro de Entidades e Coletivos Negros Universitários. Realizado entre 13 e 15 de maio na Universidade Federal do Rio de Janeiro, o EECUN representa um divisor de águas na história dos movimentos sociais e das universidades brasileiras. Ainda assim, infeliz e estranhamente, o evento, coberto por integrantes do Alma Preta, recebeu pouca atenção de mídias negras. A participação de 2000 estudantes negros, a programação altamente qualificada, as discussões inovadoras, a criativa programação cultural são coisas nossas que aguardam por mais escrevivências.
Deliberadamente apartidário, o evento foi organizado por estudantes de coletivos de diferentes estados do Brasil que apostam suas fichas na auto-gestão como caminho para o fortalecimento da negrada na academia. Com essa perspectiva, organizações como o Coletivo Negro Carolina Maria de Jesus da UFRJ denunciam e lutam contra o racismo estrutural em diálogo com saberes ancestrais adquiridos em suas vivências comunitárias, familiares, espirituais, trabalhistas.
Parte do longo percurso histórico dos movimentos sociais negros, o EECUN causou em sua estreia ao colocar na primeira pessoa e em plano principal o protagonismo de milhares de jovens pretxs que, por todo o Brasil, esfregam na cara da sociedade hipócrita e racista suas identidades negras e o compromisso com as transformações sociais. O engajamento criativo e plural da juventude é representado por movimentos como Dandaras da Baixada e Marcha do Orgulho Crespo, que, de várias maneiras, ensinam-nos sobre a emergência de novas culturas negras na academia, em escolas, nos movimentos sociais.
Atenta às disputas de sentido que a universidade e o como estar nela imprimem na constituição de nossas subjetividades, vale comentar que o EECUN ocorreu no Centro de Ciências da Saúde da UFRJ, espaço “da Ciência” historicamente erguido através de saberes médicos brancos, masculinos e heteronormativos que objetificaram o negro e nossos corpos. Nesse sentido, a expressiva plateia e a legenda da comissão organizadora à foto evidencia uma guerra de narrativas e culturas nas quais temos conseguido, apesar das barreiras, acumular vitórias significativas. Tintim às transgressões!
13 de maio, dia nacional de luta contra o racismo. Que esse 13 de maio seja lembrado como o dia de luta do EECUN – Encontros Nacional de Estudantes e Coletivos Universitários Negros. Um dos grandes passos pra uma verdadeira abolição.
As concepções racializadas de ativismo, ancoradas no diálogo com referenciais africanos e “amefricanos” (Américas + Áfricas) carregam a certeza de que falamos aqui de uma “geração tombamento”, que chega para ficar e ensinar-nos novas formas do lutar, do comunicar-se, do posicionar-se na arena de conflitos. Momento marcante, representativo de uma cultura acadêmica da negrada foi a abertura do evento, na qual coube à Dona Therezinha, que dividia a mesa com o Sr. Adão, o reitor e professoras da UFRJ, iniciar os trabalhos. A representante do Sindicato das Trabalhadoras Terceirizadas da UFRJ foi recebida com muita emoção pelxs estudantes, que de pé a aplaudiam (“Linda! Linda! Linda”). Dona Therezinha conversou conosco sobre muitas antigas colegas de trabalho que se suicidaram ou que por não receberem seus salários tornam-se moradoras das ruas e viadutos da cidade que sediará, em poucos meses, os Jogos Olímpicos.
A despeito de sermos tratados com o descaso e a irresponsabilidade das autoridades, o sociólogo afro-americano William Du Bois tinha razão ao afirmar que enquanto “raça Negra” temos uma mensagem a passar para a humanidade. Esta certeza confirmou-se em vários momentos do EECUN, como por exemplo, minutos antes da referida mesa, quando um universitário da comissão organizadora pegou o microfone para pedir à “negrada presente” que cooperasse com a limpeza e a organização do espaço uma vez que muitos dxs que ali estavam têm em suas famílias mães, tias e irmãs empregadas domésticas e trabalhadoras terceirizadas. Falas como esta, representativas da importância de cuidarmos umas/uns dos outros, são exemplos poderosos de que as juventudes negras universitárias são, de fato, autoras de uma nova cultura acadêmica. Uma cultura acadêmica da negrada, marcada pelo reconhecimento de corpo e mente como parte de um todo, em oposição à perspectiva eurocêntrica da separação entre os dois polos.
Dentre as pautas discutidas, tecidas a partir de análises conjunturais precisamente racializadas, destacam-se temas como acesso e condições de permanência na universidade, genocídio da população negra, mulherismo afrikana e os feminismos negros. A educação e o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira, a religiosidade, a literatura negra. Além de trabalhados nas mesas, tais temas também foram abordados em pôsteres e painéis nos quais a comunidade estudantil apresentou, nos marcos da pesquisa ativista, os resultados de seus fazeres acadêmicos.
***
Acompanhar parte das atividades dos três dias do encontro, que reuniu jovens negrxs diversos em cores, cabelos, gêneros, sexualidades e classes, foi – para usar uma palavrinha controversa da moda – um privilégio para a minha formação de pesquisadora ativista. Em um jogo de cena complexo, que envolveu a condição de observadora e participante, estive na mesa solene, na qual tive a oportunidade de falar com (e não sobre) os jovens de minha comunidade acerca dos sentidos de liberdade e de pós-abolição no tempo presente. E assim, em diálogo com a instigante frase de Sueli Carneiro: “entre esquerda e direita continuamos sendo pretos”, pensamos juntos sobre a nossa condição de pessoas negras frente ao cenário de retrocessos que estamos vivendo.
Ainda muito emocionada com tudo que vi, vivi e aprendi (destaca-se o indiscutível protagonismo de mulheres negras no Encontro), posso dizer a vocês que foi uma saborosa reparação histórica estar entre tantos sujeitos negros experimentando coletivamente a liberdade de sermos autores e donos de nossas próprias mentes, vidas e trajetórias. Os aplausos com os quais vocês me receberam ao subir no palco, retribuídos com meu punho esquerdo cerrado em riste, reforçam a materialidade de uma cultura acadêmica da negrada, calcada na valorização de nossos saberes pretos e nas intersecções entre universidade, escolas e movimentos sociais. O EECUN pôs em prática o direito conquistado de gritar: JUNTXS SOMOS MAIS FORTES! #ubuntu