Aviso de conteúdo – violência concreta e simbólica, feminicídio, esquartejamento, imolação, adoecimento emocional absoluto, estupro, escravização. (…)
quem ouviu, um soluçar de dor, no canto do Brasil?
Clara Nunes
A ofensiva conservadora no Brasil também é midiática.
Nós, Blogueiras Negras, denunciamos e lamentamos que espaços midiáticos concedidos publicamente difundam ideais que poderiam facilmente ser caracterizados como discursos de ódio sob o disfarce de novelas de época. Na impossibilidade de ser explicitamente racista, sexista, por exemplo, empresas de mídia veiculam tais conteúdos sob uma débil camada de verniz histórico, sem qualquer problematização ou compromisso com a realidade.
Isso se torna ainda mais evidente quando as personagens somos, nós mulheres negras. Escrava Isaura, a quinta posição no ranking de programas mais vendidos ao exterior pelo maior conglomerado de comunicação do pais (Globo) e cuja estreia completa 40 anos, nada mais é que o Brasil exportando narrativas de ódio contra toda uma população que é classificada (e violentada) segundo seu gênero, sua cor, sua idade e seu tipo de corpo, entre outras coisas.
Infelizmente Liberdade Liberdade (Globo) e agora Escrava Mãe (prólogo de Escrava Isaura, televisionada pela Record, empresa ligada à igreja evangélica Universal) reeditam novelas que nada mais são que engrenagens de um racismo estrutural e estruturante, cujas implicações concretas e simbólicas se retroalimentam com ferocidade. Falar de novela é entender como a violência se naturaliza e se justifica fora das telas enquanto o entendimento dos discursos e significados que estruturam as relações econômicas e sociais criam possibilidades.
Essa discussão também é sobre a inserção de profissionais negras no mercado de trabalho, por exemplo. Agradecemos a todas aquelas (e não a seus empregadores) que desbravam e mantém possíveis caminhos por todas nós. Nossa intenção não é investir sobre as atrizes (e demais profissionais) negras qualquer sentimento de culpa ou inadequação. Muito pelo contrário.
Assim, gostaríamos de expressar nosso sentimento de admiração, respeito e gratidão às atrizes Neusa Borges, Zezeh Motta, Nayara Justino, Sheron Menezzes, Olívia Araújo, Mariana Nunes e Heloísa Jorge. Nosso objetivo é a ampliação de oportunidades para autoras, atrizes, técnicas, críticas de arte e demais negras dessa industria. É pela representatividade e visibilidade afirmativas que estamos e estivemos organizadas em luta.
É pela vida (de todas as) mulheres
A dramaturgia é capital no entendimento dos mecanismos que estruturam as violências concretas que nos são dirigidas. Sob a camuflagem de novela de época, por exemplo, é justificada e naturalizada a cultura do estupro. Como resultado, essa e tantas outras opressões que incidem sobre a mulher negra se tornam invisíveis até mesmo para o cenário feminista nacional. No protesto em que nos manifestamos contra a violação de nossos corpos, pelo menos na cidade de São Paulo, não houve menção aos crimes contra mulheres negras notoriamente publicizados nos últimos dias.
Não nos esqueçamos de Rayzza Ribeiro, mulher negra, 21 anos, estudante. Queria ser médica. Foi violentada, esquartejada, carbonizada, vítima de feminicídio. Não nos esqueçamos de Isadora Cézar, mulher negra, feminista, aluna da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, 23 anos, vitimada mortalmente pela violência sexual alojamento da instituição e pela revolta pela impunidade de seu agressor, cuja única sanção foi perda do acesso à moradia universitária.
Não nos esqueçamos que a violência contra a mulher negra no Brasil tem medida. Desde 2003 houve um aumento de quase 200% de feminicidio contra mulheres negras, alvos de uma aliança corriqueira e mortal entre racismo, sexismo, lgbtfobia, cisheteronormatividade e um modelo judaico-cristão que incidem sobre as relações sociais, econômicas e institucionais que nos desqualificam como objeto que se manipula dentro e fora das telas.
É mesmo pela vida de todas?
Às famílias dessas mulheres, nosso sentimento profundo e sincero.
A ofensiva também é midiática
Vivemos duros tempos de retrocessos tanto concretos quanto simbólicos.
O tamanho da luta também pode ser mensurada pelo herói branco de Escrava Mãe. Seu dorso recortado por chibatas quer nos convencer de que a escravização e suas consequências não marcaram apenas a nossa pele, invisibilizar uma luta por direitos que é secular, silenciar o modo como um racismo que é estrutural e estruturante vitima toda uma população fora das telas. É a afirmação de que, se todos sofremos, não existe a necessidade ou urgência de ações afirmativas por exemplo.
Ou pela naturalidade com que se reproduz num programa de auditório matinal (em cuja plateia estão crianças negras que em seguida dirão em alto e bom som que não gostam de seus cabelos) uma atriz negra sendo marcada a ferro e brasa. Pela naturalidade com que nossa sexualidade é reduzida a condição de fetiche para um casal de brancos. Com que somos violadas, perseguidas, impedidas de exercer o consentimento enquanto, aqui fora, somos feridas de morte pelo feminicídio.
Assim é com veemente revolta e profunda indignação que nós, Blogueiras Negras, denunciamos e lamentamos a veiculação de Liberdade Liberdade e agora Escrava Mãe, cujo título é uma flagrante afronta. Não aceitaremos, mais uma vez, sermos objeto do sadismo midiático que sente prazer em manipular, simbólica e portanto concretamente, nossa existência. Sobretudo por aqueles que alinhavam e se beneficiam do retrocesso, por aqueles que defendem que carregamos na pele a maldição de Caim.
Acreditamos que nos pertencem o corpo e as narrativas sobre ele. Defendemos que o direito ao exercício do consentimento, concreto ou simbólico, bem como o direito ao aborto, à escolha sobre à parentalidade, ao arranjo familiar e às crenças que aceitamos ou refutamos são inegociáveis. Que sejamos nós a construir nossos próprios discursos de modo a visibilizar aquilo que nos mata mas também tudo aquilo que nos cura. Qualquer movimento em direção oposta à ampliação de tais diretos constitui um retrocesso que não será tolerado.