não posso.
Não tenho direito.
Tenho trava na garganta.
Quando tinha 5 anos de idade, minha filha fez uma daquelas birras de criança, queria ir brincar lá embaixo. Era hora do almoço eu disse não. Inconformada, ela abriu a porta e saiu. Desceu correndo as escadas e logo alcançou a rua.
Morávamos no quinto andar de um prédio localizado ao lado de um dos pontos turísticos mais visitados de Brasília, a Igrejinha. Área abastarda da cidade, de moradores da classe média, quase todos brancos.
Fui logo atrás, também correndo, porém com menos agilidade. Quando a avistei na praça dessa igreja, minha filha conversava com um senhor idoso, que estava ali lendo o seu jornal. Ela segurava uma nota de 1 real, que “ganhou” do homem. Naquele instante, meu coração disparou, pulava dentro do peito. A irritação que eu sentia pela peraltice da criança, se transformou em ódio profundo por aquele senhor. Vi logo que ele deduziu que a menina estava ali para pedir esmola, provavelmente a mando da mãe. Que atrevimento, que ousadia. A raiva me ardia.
Eu comecei a berra: – DEVOLVE ESSE DINHEIRO, DEVOLVE ESSE DINHEIROOO!
Uma criança preta, de cinco anos, sozinha numa praça. Ela podia estar perdida, precisava de ajuda. Mas, na lógica racista, era só mais uma criança de rua, que estava ali para pedir esmola. Um objeto incômodo, é preciso se livrar dela. Uma nota de 1 real resolve o problema. E ainda tivemos sorte, poderia ter sido muito pior. Muitos casos acabam em desgraça.
Seu filho poderia ter sido colocado sozinho dentro de um elevador e enviado para a cobertura de um prédio de 22 andares.
Eu não posso escrever nada sobre o menino Miguel porque não tenho palavras edificantes para transmitir pra sua mãe Mirtes. Sou incapaz. Se por um gesto de humilhação envolvendo minha filha eu senti raiva tão profunda, sede de provocar dor física no velho e deixá-lo estrebuchando na praça da igreja, o que teria eu pra dizer para outra mãe sobre o ato assassino de uma desalmada que mandou seu filho de 5 anos para a morte? Miguel só queria encontrar sua mãe, que passeava com o cachorro da patroa.
Não posso falar do Miguel, do João Pedro, da Ágatha, Jennifer e tantas outras crianças e jovens negros mortos brutalmente todos os dias no Brasil. São números de uma estatística macabra que tenta destruir uma geração.
Não quero expor seus corpos, nem a dor de suas famílias. Não quero participar desse circo de horrores que alimentam as manchetes jornais e as hashtags das redes sociais com uma solidariedade de ocasião, aproveitadora, caçadora de fama.
São cenas e lembranças que adoecem os familiares, enfraquecem a resistência, sugam a dignidade da população preta. E é justamente o que eles, os opressores do sistema racista, querem assistir: os nossos corpos fracos, adoecidos, imobilizados. E eu não quero contribuir com isso. A agora é sem fotos, sem cartazes, nem desenhos ou textão melancólico a cada nova vítima nas minhas páginas.
A nossa irmandade deve ser pela sobrevivência, no enfrentamento diário, no fortalecimento do nosso povo, com mais ação e menos discurso virtual. Precisamos é de estratégia, organização, de agir com um só coração. ?✊?
Imagem: NeedPix