Trabalho escravo infantil e racismo
texto escrito pela Comunidade Blogueiras Negras
Os meios de comunicação de massa, enquanto instrumentos da construção e disseminação de discursos que carregam o poder de legitimar e induzir práticas das mais diversas, tem como dever atentar-se para o caráter social ao qual a comunicação presume. Mas diferente disso, o que esses meios – sobretudo a TV – vem fazendo com maestria é justamente nos violentar.
É completamente irresponsável um canal de televisão bem como uma jornalista, romantizar uma história de sofrimento, ignorando toda a herança histórica que perfaz a vida de famílias pobres e negras, em nome de um sensacionalismo que só fomenta um discurso meritocrático e que naturaliza as tantas renúncias as quais crianças pobres e negras são obrigadas a fazer desde tão cedo.
Por exemplo, quando abordam um tema tão delicado quanto o trabalho escravizado infantil, que é uma prática tão naturalizada em nossa sociedade, via de regra enxergada, entendida e defendida como algo próximo a assistência, a fazer o bem. A mesma situação de exploração será vista de maneiras distintas se sua vítima for uma criança negra ou branca.
Aquele que explora e escraviza não pode mais ser descrito como alguém que está fazendo o bem, ajudando a quem precisa, fazendo caridade (os termos são esses, realmente desprovidos de qualquer caráter político e de qualquer aproximação com a realidade, que é a exploração e a escravização). Estamos falando de uma relação de poder de extrema violência, não de carinho e cuidado.
Uma das grandes ironias disso é que, dependendo do interesse do veículo que transmite essa mensagem, haverá ou não o interesse de culpabilizar a família negra que “colocaria” suas crianças em situação de vulnerabilidade. Afinal é melhor “estar trabalhando que roubando”.
E maior interesse sempre será o defender a figura da pessoa branca salvadora, que está ali ajudando sendo boa gente. Então estamos falando sobre a exploração de trabalho infantil, mas também da exploração da imagem da criança negra na mídia. Isso acontece em casos de escravização infantil para promover um sentimento cívico, uma vontade de ajudar “essa gente que precisa”. É desse modo que a imagem das crianças negras é violentada, sob a justificativa de que é assim que se comove uma sociedade e se sensibilizada com as questões “do outro”.
O que a mídia não faz é promover o debate acerca das questões sociais, muito menos publicizar a escravização que ainda acontece nos dias atuais sem a denúncia de um quadro de tamanha vulnerabilidade estrutural a que são impostas também as crianças negras, tornando essa parcela da população extremamente vulnerável a condições humilhantes de trabalho e exploração.
Isso inclui crianças cuja exploração ou escravização como devemos dizer sem pudores, é entendida como um “gesto” de cuidado, de afeto de carinho por parte de quem explora e escraviza. Estamos, falando inclusive das adoções ilegais de meninas negras, que passam a ser trabalhadoras domésticas em troca de um teto e de comida. Vindas de famílias que vivem na extrema pobreza e encontram nesses potenciais “salvadores” a perspectiva de uma situação melhor para suas filhas.
É o que se chama de “trouxe pra criar”, mas que nada mais é que uma das facetas mais cruéis do trabalho escravizado infantil. Mais uma vez, são as meninas negras as mais vulneráveis a essa violência.
Toda criança negra merece sim, atenção e cuidado, brinquedos e amor. Mas esse cuidado não deve jamais ser acompanhado de práticas sensacionalistas, que reduzem questões estruturais ao consumo pontual que não vai mudar a trajetória da criança cuja imagem é exploradas para gerar likes e pontos de audiência. Ou para gerar comoção e aumentar o número de doações para essas mesmas crianças negras.
Se querem ajudar comecem por respeitar a imagem de nossas crianças. Não vamos aceitar que a questão seja reduzida à oferta de asssistencialismo demagógico, construído para que até mesmo a pauta seja transformada em espetáculo para satisfazer a fome de quem se alimenta e alimenta esse estado de coisas em que se pode explorar a imagem de uma criança negra sem pudor. Afinal, é exatamente isso que se pode fazer fora das telas.
O modo como os meios de comunicação à serviço da branquitude distorcem as questões aqui apresentadas podem afetar inclusive disputas jurídica sobre a questão. A primeira a ser acusada seria a família, mais especificamente a mãe negra, não quem adota ou quem usufrui do trabalho escravizado infantil. Não a benfeitora branca, cheia de boas intenções e afeto no coração, que tratou aquela criança como quase da família, não é assim?
Certamente prevaleceria a acusação de que foi o lado mais vulnerável que colocou suas crianças em condição de trabalho escravizado, não aquela pessoa branca que nada mais tem que pretendia ajudar, dar carinho. Temos aqui um processo cruel de revitimização em função da cor e da classe social das famílias envolvidas. E o nome que dão pra isso sempre é carinho.
Para além da questão da vulnerabilidade da família, é preciso apontar o direito a infância como primordial para todas as crianças. Infância essa que deveria ser pautada pelo direito de brincar, estudar e ter segurança. Numa matéria como essa, não é considerado esses elementos como fundamentais para formação saudável de qualquer indivíduo, visto que a menina está trabalhando e sendo exposta, essa violência simbólica é justificada em cima da “dignidade” do trabalho.
Ou seja, todo trabalho é digno, mesmo que quem trabalha seja uma criança. Dessa forma, a matéria veiculada não só reproduz uma violência ao expor a criança e a família, mas também naturaliza o trabalho infantil. Além de reafirmar uma máxima na nossa sociedade racista ditando o lugar das pessoas negras como sendo o do trabalho de baixo reconhecimento social.
Como comunicadoras, temos ciência do poder exercido pela mídia enquanto agente propagador de violências simbólicas. Já não é mais tolerável que a comunicação permaneça nos lançando a esses locais de subalternidade e que necessitam da tutela de grupos que sempre se beneficiaram com nossa condição. Por isso, repudiamos este tipo de reportagem e abordagem sensacionalista e racista feita por esses programas que tem como principal objetivo o lucro e a audiência a todo custo.
Como mulheres negras, queremos que essa televisão que aí está pare de retratar nossas meninas como objetos, como força de trabalho, tirando delas toda a humanidade e subjetividade. Exigimos respeito para com nossas crianças que são humilhadas, mortas e tratadas como mão de obra barata, como objetos e sem direito à sua infância.
Vivas ou mortas, jamais escravas!