Cada um/uma sabe os sentimentos que alimentam e inundam a nossa escrita, quando já não cabe mais dentro do peito e transborda pelos dedos. Falar de questões raciais, sendo eu uma mulher preta, não é tarefa fácil, mas necessária.
Isso porque o mergulho em nossas próprias experiências pode ser o momento de reviver as dores geradas nessas relações. Mas aprendi com minhas mais velhas que “não escrevemos para adormecer os-da-casa-grade, muito pelo contrário”, como bem colocou Conceição Evaristo.
Eu, mulher negra, mãe de duas crianças, dois meninos, aprendendo a ser uma mãe de crianças atípicas e aprendendo a ser também, porque no meio das atribuições que o mundo nos exige, a gente até esquece que é gente para além de tantas outras coisas que “temos que ser e fazer”.
Desde que me entendi como adulta não conheci outro caminho que não o da luta, o de buscar as transformações no espaço onde estivesse, de movimento estudantil ao movimento negro, caminhos esses que muito me orgulham, porque são as nossas trajetórias que também nos constituem.
Nessa caminhada, e enquanto profissional de jornalismo, as narrativas e discursos sempre me chamaram atenção, não pelo conteúdo em si, mas pelo que podem acionar e suas intenções.
Gostaria de trazer uma reflexão sobre as corpas/os negras/os dentro de espaços institucionais brancos, sobre até onde vão às alianças e como o antirracismo muitas vezes é acionado apenas de forma retórica. As alianças na esquerda, mostraram limites ao longo dos anos quando se trata de pessoas negras, podemos enumerar diversos episódios como nos governos de esquerda dos anos anteriores, sendo visivelmente corrigido nesse novo momento político, e que bom!
Anielle Franco, irmã de Marielle, e atual ministra, salienta a importância dos partidos de esquerda assumirem a responsabilidade com a integridade física e psicológica das mulheres negras em mandatos ou candidatas, diante de um cenário constante e assombroso de violência política.
Historicamente, o tema racial sempre foi negligenciado nos espaços de discussão e decisão das organizações progressistas, isso também se deu devido à falsa dicotomia de que o debate de classe vem primeiro, depois os demais. Classe no Brasil é atravessada pela raça e pelo gênero, fato constatado por grandes pesadoras como Beatriz Nascimento, Lélia Gonzales, e em obras fundamentais como A sociologia do negro no Brasil, de Clóvis Moura.
Mas o que esperar se os espaços de formação de diversos segmentos sociais ainda estão estruturados exclusivamente no pensamento europeu, e passa longe de uma reflexão histórica-social e econômica da sociedade brasileira?
Por isso, para além de mostrar a diversidade, em qualquer espaço de poder, institucionalizado, pessoas que se colocam como aliadas e estão à frente de projetos progressistas, primando pela defesa de pautas interseccionais e em defesa dos direitos humanos, precisam, antes de tudo, ter esse compromisso ético para dentro de seus espaços, proporcionando equidade e cuidado com pessoas pretas nesses ambientes.
É corriqueiro as formas como esses espaços ainda funcionam numa lógica da branquitude, ou seja, os lugares de comando e decisão continuam na mão de pessoas brancas, ou não negras. E são nessas relações de poder e subalternidade onde as violências coloniais continuam existindo e se perpetuando. É preciso muita coragem para romper com essas lógicas, quando você só se conhece inserido nela.
E isso diz muito sobre os discursos e conhecimentos validados, nesse contexto, ou se dança a música de quem tem o poder de pedir, ou não tem espaço, para que o pacto narcísico consiga ter o efeito desejado, é preciso assegurar a “domesticação” de pessoas negras. O racismo existe, mas não o da nossa empresa/espaço político, o racismo está sempre no outro, como diz um sociólogo que eles respeitam “o brasileiro tem preconceito de ter preconceito”, valeu Florestan Fernandes!
E como se resolve o problema do negro indomado? Muitas formas de ser eliminado, a morte tem muitas faces. Se você sobrevive daquele trabalho, ameaçar e demitir é uma forma bem prática, porque atinge diretamente a vida em sua materialidade, a alimentação, a moradia e tudo que é preciso para se viver com dignidade, apesar de tantas trabalhadoras pretas trabalharem de CNPJ, de forma precarizada e sem garantias, para não gerar problemas para as/os empregadoras/es. Mas ainda poderíamos citar o ostracismo, a desmoralização e até mesmo a invalidação profissional.
O racismo estrutural, tema que ganhou evidência nos últimos anos, principalmente através da produção do intelectual Silvio Almeida, mas já abordado em diversas obras de pensadoras/es negras/os no Brasil, precisa ser refletido em todas as instâncias, compreendido que ele não é uma forma abstrata de poder e dominação, ele é acionado por pessoas, organizações e instituições, e que precisam se responsabilizar por isso.
Em tempos onde gritamos “Marielle vive”, e “Por mais pessoas negras no poder”, as ações revelam bem mais que os discursos. Atitudes que mudem o cenário das sub-representações de mulheres negras na política e espaços de decisão se fazem mais urgentes, o letramento racial precisa ser desenvolvido por pessoas que ocupam espaços de poder, e principalmente pessoas não negras, mesmo que em outras identidades subalternizadas.
Um comprometimento com a vida e dignidade da população negra, é uma reparação histórica da qual não abriremos mão. Para nós, pessoas negras, é importante percebermos as fronteiras das lutas, e quando nossa identidade é secundarizada, caso o contrário, o mercado, as instituições brancas, continuarão nos transformando em tokens, em símbolos da garantia de compromissos com o antirracismo, mas que só vai até a página 2.
Que saibamos escolher nossas alianças, para que nossas identidades não sejam moedas de troca em um jogo injusto de poder na sociedade.