Reflexões sobre a situação das crianças negras no Brasil
Sirenes, tiros, medo e lágrimas. Só no Rio de Janeiro 44 crianças foram mortas vítimas de bala perdida de 2007 até 2018, muitas delas negras. Essa é a rotina de milhares de famílias das periferias brasileiras, aqueles que não têm suas dores retratadas na dramaturgia televisiva, não tem apelo, não rende lágrimas, só desconfiança e apatia. Diariamente as televisões e jornais nos inundam com notícias e números das mortes e assassinatos das crianças e jovens negros, essas mortes só geram dados, números frios e sem história. A cada 23 minutos um jovem negro é assassinado, 23.100 por ano, segundo a CPI do Senado, que utilizou o último Mapa da Violência.
Mas a comoção e a empatia no Brasil têm cor e credo, ela é branca. O extermínio das crianças negras se tornou um fato comum, sendo quase sempre justificado com “bala perdida” ou com possíveis envolvimentos com o crime, não gera reportagens, marchas pela paz feitas pelos “cidadãos de bem”, porque, já é esperado que essas crianças pretas não tenham futuro.
Ao crescer são ensinadas a odiar sua cor, sua origem e privadas de conhecer sua história, essas crianças seguem lutando pela vida, um dia após o outro, muitas vezes tendo a rua como único espaço de acolhimento, para elas não chega ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), não chega Criança Esperança, Ongs, políticas públicas, não chega nada.
São as nossas crianças negras as maiores vítimas do racismo sistêmico. Esse que alcançou o objetivo de anular a nossa existência, ao garantir que não tenhamos acesso aos direitos básicos e essenciais para a sobrevivência humana. Sem acesso a saúde, educação, moradia, lazer de qualidade muitas sobrevivem com baixa estimativa de vida.
Se é na fase da infância que buscamos e criamos referências na construção da nossa identidade, são as crianças negras as maiores prejudicadas, já que desde a mais tenra idade já são submetidas a todas as violências, da física à simbólica. Na infância são privadas de conhecer os heróis e heroínas da história do povo negro, não estão nos livros didáticos, apenas de forma subalternizada, bem como não são os personagens infantis.
A não aplicação da Lei 10.639/2003 que trata do ensino da História e Cultura Afro-brasileira nos currículos escolares, é mais uma negação de direitos que atinge diretamente a vida das crianças e jovens negros e negras. São essas mesmas crianças que são tratadas como “problema” em sala de aula, onde alguns professores despreparados só enxerga a punição como possibilidade para esses alunos, e não percebe a importância de potencializar o que aquele indivíduo traz de atributo.
A criança negra que pode ser vista como preguiçosa em sala de aula pelos professores e colegas de classe, na verdade pode estar apresentando um dos sintomas da Anemia Falciforme, doença genética com maior índice de incidência na população negra, e que infelizmente, por fragilidades na política pública de saúde voltada para o diagnóstico e tratamento, tem ceifado a vida de inúmeras crianças, pretas e pobres.
O diagnóstico da anemia falciforme pode ser feito através do Eletroforese de hemoglobina ou pelo Teste do Pezinho, no entanto, nem todas as famílias tem acesso ou são orientadas a procurar o teste, e isso ocorre, porque ainda há uma grande dificuldade por parte dos órgãos de saúde, em tratar a questão racial, que está intrínseca na questão. O Programa Nacional de Triagem Neonatal (PNTN), do Ministério da Saúde, apontou que no Brasil nasceram cerca de 3.500 crianças com Doença Falciforme, e 200.000 com o Traço Falcêmico.
Apesar da portaria 1.931 do Ministério Público de Saúde que instituiu em 2005 o Sistema Único de Saúde a Política de Atenção Integral às Pessoas com Anemia Falciforme e outras Hemoglobinopatias, não foi implantada como uma Política de Estado, então fica a critério das gestões estaduais e municipais aplicarem ou não e como querem. Segue então, um nítido atraso no avanço das medidas de prevenção da mortalidade infantil em decorrência da Doença Falciforme, reforçando a ideia de que não há priorização na vida dessas crianças, é o racismo institucional mais uma vez numa ação genocida.
Uma outra questão que tem se traduzido em um verdadeiro problema na vida das crianças e adolescentes é a exploração do trabalho infantil e a exploração sexual de crianças e adolescentes. Segundo o estudo “Trabalho Infantil nos ODS”, lançado pelo Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI), apresentou que 63% das crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil no país são negras. A pesquisa enfatizou ainda que o trabalho doméstico infantil tem como perfil as meninas negras, sendo 73, 5%. Ainda em relação a exploração sexual, dados da UNICEF reforçam que o perfil são meninas negras e pobres, cerca de 85 % são pretas. Os números gritam: Os corpos negros infantis permanecem sendo violentados e explorados.
Diante de dados alarmantes que só confirmam o que o cotidiano das ruas nos apresentam, é que se faz necessário refletir sobre a seletividade na comoção das mortes infantis, sejam elas nos morros e favelas, brincando ou à caminho da escola, na ausência de atendimento nos serviços de saúde ou em barcos de imigrantes de países africanos naufragados como tem ocorrido nos últimos anos. Enquanto parte da sociedade brasileira, autointitulada como cidadãos de bem, procuram criminalizar as mulheres que escolhem abortar, milhares de crianças nascidas pretas estão nas ruas, ausentes de qualquer assistência e entregues à própria sorte. Lutar pela garantia de direitos dessas crianças negras é fundamental para o enfrentamento ao racismo e pelo bem viver do povo negro.
“Deixa o menino jogar ô iaiá
Deixa o menino aprender ô iaiá
Que a saúde do povo daqui
É o medo dos homens de lá
Sabedoria do povo daqui
É o medo dos homens de lá
A consciência do povo daqui
É o medo dos homens de lá”
Deixa o menino jogar (Natiruts)
Fontes:
http://www.fnpeti.org.br/noticia/1826-negros-sao-maioria-no-trabalho-infantil.html
Crianças negras são as que mais sofrem suspensões nas escolas dos EUA
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-36461295
Imagem destacada – Cebi