Desde que o “mundo” é “novo”, os homens brancos ocidentais vem definindo e determinando um padrão de cultura e valor ao resto do mundo. É no século XIX e com crescimento do imperialismo europeu que essa imposição a outros povos e nações considerados mais pobres ganha mais força e se consolida, refletindo-se até os dias de hoje como evidencia o “Padrão FIFA de Qualidade”. Colonizados que somos, aqui no Brasil não haveria de ser diferente.
Não é de se estranhar, portanto, que esse padrão europeu também se estenda ao nosso entendimento de beleza, em que os corpos brancos e sua fenotipicidade são entendidos como mais bonitos, mais harmônicos, mais aceitáveis.
Diametralmente oposto a esse padrão aceitável se encontra, por lógica, o corpo negro. O corpo negro, seus traços, sua genética, seu fenótipo e a infantil tentativa de negar a construção social que tem o gosto. Somos, todos nós – negrxs e brancxs – expostos desde crianças a propagandas, programas infantis, desenhos, revistinhas em que predomina um padrão de beleza europeu. “Gosto não se discute” porque a mídia já deliberou sobre ele por nós, apresentou-o e nós, como o esperado, compramos não só o gosto mas também o slogan. Continuemos sorrindo!
Num mundo em que brancos europeus usaram de todo tipo de subterfúgio para justificar a escravização e o massacre de milhares de negros e numa sociedade construída tendo como base um padrão de beleza eurocêntrico, não poderíamos esperar outra coisa senão a associação de traços da etnia negra a coisas ruins: “cor de carvão”, “cabelo bombril”, “nariz de assar pão” etc. Isso faz com que xs negrxs não aceitem suas características e se sintam pressionados a operar mudanças em seus corpos, muitas vezes se submetendo a processos perigosos e, não raro dolorosos: nosso cabelo é muito crespo, nossos corpos são muito pretos, nosso nariz muito largo.
E por falar em nariz, as associações feitas aos narizes negros são as mais fofas: nariz de batata, fornalha de assar pão, nareba, narebão, nariz de preto (porque ser preto é ruim, lógico!), nariz de coxinha ou nariz de panela. E quando rola um blackface, além de umas palhas de aço pra representarem os cabelos, uma dentadura faltando os dentes da frente e uma fala analfabeta, o nariz ganha proporções exageradas.
Os sites de clínicas voltadas para a rinoplastia são mestres em usar indiscriminadamente esses termos para caracterizar o nariz dos negros. Dizer que são popularmente chamados não os isenta da responsabilidade de estarem perpetuando associações racistas. Muito pelo contrário: naturalizar essas associações, reproduzindo-as, só ajuda a perpetuá-las.
E não fossem essas terminologias o suficiente para esconder o racismo subjacente a elas, os narizes dxs nergxs são sempre “difíceis”, “trabalhosos”: uma das grandes “dificuldades” dos cirurgiões plásticos é enfrentar uma rinoplastia no nariz negróide; para a raça negra, caracterizada pela fragilidade das estruturas óssea e cartilaginosa do nariz, a intervenção tem sido uma alternativa “viável” na tentativa de “refinar” o órgão. Enquanto o nariz caucasiano é considerado relativamente “fácil” de ser melhorado e quase sempre tem “bons” resultados: estéticos e funcionais.
Aliás, repararam no termo negróide? Pois é. A mim me causa calafrios! E caso vocês não tenham percebido, faço questão de enegrecer agora minha posição de linguísta e tímida aspirante a analista do discurso.
Há várias formas de expressar nossa subjetividade, nossa opinião, e não é diferente quando pretendemos desprezar alguma coisa ou escarnecer dela. O sufixo –óide, usado em terminologia científica para indicar numa dada coisa uma forma aproximada de uma figura geométrica ou de um protótipo, significando portanto “semelhante a”, “que parece mas não é”, deriva daí seu sentido pejorativo. Isso porque o sufixo associa-se a uma ideia de frustração e passa a agregar esse sentido de pejoratividade.
Em negróide, o que acontece é a soma de um sufixo semanticamente pejorativo a uma base que num país babaca e racista também é considerada pejorativa: negro (o que dizer do “não vou chamar de negro pra não ofender”?). Pois então, o sentido depreciativo passa a ser veiculado não só pela soma do sufixo à base, mas também pelos aspectos culturais – em que características negras são associadas a coisas ruins – e, principalmente, pelo contexto do uso, em que não é incomum ver a cirurgia plástica sendo tratada como correção. Segundo o site Bolsa de Mulher, outro nariz desgracioso e trabalhoso para a cirurgia plástica é o nariz negróide. Então a gente tem que corrigir essa “desgraça”, né? Esse fardo, essa cruz que é o nosso nariz! Um salve para o racismo!
Por todos esses motivos acima mencionados, o termo negróide, ainda que seja largamente aceito e usado na terminologia científica, soa extremamente racista; o atestado de cientificidade não tira o sentido pejorativo que o sufixo –óide já assumiu em nosso vocabulário e portanto não tira o sentido depreciativo da palavra. Justificar o uso do termo porque ele já é “consagrado” na genética é a mesma coisa que dizer que você fala porque todo mundo também fala. Bora melhorar essa argumentação aí, minha gente!
“Poxa, Gabi, mas eu não quis ofender…” As pessoas precisam entender de uma vez por todas que nossas escolhas de palavras são verdadeiras estratégias de argumentação e não são neutras ou inocentes. Os sentidos não estão só nas palavras, mas também na sua relação com suas condições de produção que, em sentido amplo, incluem o contexto sócio-histórico e ideológico. E é esse contexto mais amplo que traz, para a consideração dos efeitos de sentido, elementos que derivam da forma de nossa sociedade – no nosso caso, uma sociedade racista! Ou seja, não podemos naturalizar o uso de palavras de sentido pejorativo para nos referir a uma raça historicamente oprimida. E não me venham com essa de que o termo pode até ofender a característica, mas não ofende a pessoa diretamente! Por favor, se você critica o MEU corpo, um corpo que é MEU, você está criticando a MIM. Não dá pra usar termos pejorativos para se referir a uma característica minha sem se referir a mim pejorativamente.
O traço ideológico do que dizemos – e pelo que somos os únicos responsáveis – está na maneira como no discurso essa ideologia se materializa, e não na essência das palavras. E eu disse que somos os únicos responsáveis pelo que dizemos porque não dá pra continuar usando esses termos racistas justificando na ciência. Racismo disfarçado de ciência é racismo também!
Pra finalizar, deixo vocês com os dizeres do cirurgião plástico Claúdio Bicudo: observo que apesar da adesão de muitos negros brasileiros, os africanos, principalmente os angolanos, ainda criam resistência a esse tipo de cirurgia [rinoplastia].
Muito bem, Dr. Bicudo, resistência é a palavra!
FONTES: CÂMARA JUNIOR, J. M. Contribuição à estilística da língua portuguesa. Rio de
Janeiro: Simões, 1953;
ORLANDI, Eni P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas, SP:
Pontes, 1999.