Em reverência à Dona Maria Gregória e nossas matriarcas.
Soube desde a muito tempo que esse dia chegaria. Imaginei que estaria preparada para falar com aquela menina que uma amiga chama carinhosamente de “solar” sobre o que é o racismo e como nos atravessa. Sempre fiz questão que soubesse quem é para que ninguém pudesse arrancar sua história de si. Mas e quanto às demais violências, aquelas que vão muito além de dizer que ela é preta demais para ser branca e branca demais para ser preta?
Tudo o que aconteceu foi ainda mais desafiador do que havia previsto. Aconteceu durante os dias de isolamento. Numa semana em que tivemos de contar a cada dia mais uma criança negra assassinada. Não sabia o que dizer mas engoli seco qualquer dúvida. Ser mãe também é reviver de um outro lugar nossos próprios os medos para que possamos participar da infância de nossas crianças. Permitir que elas criem seus próprios significados acima de tudo. Muitas vezes usar dos mesmos artifícios que nossas próprias mães tinham para fazer isso.
Confesso que tentei poupar seus dias. Já bastavam o choro, a impaciência. Já bastava aquela força que ela tira muitas vezes não sei daonde para deixar seu grande amor, a família, mais feliz. Sobre o que podemos conversar? Vamos jogar? Fiz um teatro mamãe, uma música. Não queria tirar daquele rosto o sorriso e a felicidade que sempre foram suas companheiras. Não assim, não tão cedo.
Mas ela não estava ali no canto simplesmente pintando e cortando papeizinhos, nenhuma criança preta está. Acompanhava atentamente as notícias à respeito do assassinato de George Floyd. E quando por um descuido viu as matérias sobre o assassinato de Miguel Otávio, tudo mudou. Era uma criança preta como ela. E o sentimento correu solto. Chorou como não fazia desde que nosso gato foi envenenado. Jogou seu corpo todo sobre o meu e foi dormir inconsolável.
Seu mundo foi violado de maneira inequívoca. Ser uma criança negra é muito mais que aprender a ser responsável ou fazer deveres da escola, é partilhar com os adultos o medo, o sofrimento e a incerteza. É confrontar a morte quando a vida nem bem começou, ser consolo quando nem se tem idade para fazer isso.
Disse que isso jamais aconteceria com ela, mesmo sabendo que estava mentindo, incapaz de impedir que aconteça comigo mesma ou com qualquer outra pessoa que amo. Ao mesmo tempo que sem palavras, pensava que preciso fazer absolutamente tudo o que estiver a meu alcance para cumprir essa promessa.
Queria dizer para minha filha que pode ser uma artista, uma astronauta, uma bailarina sem ter que ao mesmo tempo falar dos olhares, das recusas, de todas as vezes que ela estava sozinha na praça e foi agredida. Aquela criança não é boa o bastante para você brincar, ouviu ao passar por uma mãe branca com seu filho. Outra disse que ela é violenta demais, imaginem. Na escola dizem que seu cabelo é um fuá. Não é reconhecida como uma líder em potencial, é teimosa.
E o que responder quando ela pergunta “tudo isso porque ele era preto?” como se falasse de si mesma. É minha filha, tudo porque Miguel era preto, respondi pensando no sentimento que inunda nesse momento o coração de sua mãe, Dona Mirtes. Respondi vendo o rosto daquela criança sorrindo, rodeada de balões em uma festa. Aquele sorriso “solar” que vimos em diversas fotos.
Agora entendo que por todas gerações até onde nossa estória deu conta, foi tudo sobre pensar futuros possíveis para nossas crianças. Em primeiro lugar preservando suas vidas. Depois pensando em como oferecer as ferramentas possíveis para viver quando não mais estaremos aqui.
Foi assim para minha trisavó preservando em seu corpo as histórias de nosso povo após a “abolição”. As noites em que minha bisavó passou no quarto de santo rezando para seu sagrado depois de lavar as roupas dos brancos. As lágrimas de minha avó ao ver a comida em cima da mesa do “patrão” sabendo que os filhos não tinham o que comer em casa. Minha própria mãe limpando enquanto resignada nos dizia que deveríamos estudar. Sobre mim, pensando em como honrar suas vidas diante de tudo isso.
Ser uma preta sim senhor, como dizia meu avô.
“Solar” perguntou como os adultos sabem que estão a enfrentar o racismo. Após ouvir a resposta, assentiu com a cabeça e disse que já havia acontecido com ela também. Muitas vezes. Foi duro enfrentar o momento em que ela finalmente nomeou a violência. Ela já sabia, mesmo assim tive de contar. É racismo minha filha, quando for assim faça como já conversamos. E se nós estivermos ocupados, diga que é racismo. Vamos ouvir.
E como nossas crianças nunca estão simplesmente pintando, a resposta foi um pequeno cartaz, em que pede “justiça aos negros” mesmo sabendo que não poderia ir para uma manifestação. Disse que se eu fosse, iria comigo. Não me surpreeendi com a certeza de quem Xangô é o dono do caminho. Ainda assim, não tive coragem de levar “Solar” comigo e nem deixar que simplesmente ficasse em casa. Vimos tudo pela televisão. Juntas.
Imagem – Hank Willis Thomas, tal mãe, Tal filha. 1971