Por Djamila Ribeiro para as Blogueiras Negras
Nos EUA, as mulheres negras começaram a denunciar a invisibilidade dentro do movimento feminista, na década de 70. No Brasil, o feminismo negro começou a ganhar força no final desta década, começo da de 80. O I Encontro Feminista, de 1985, que aconteceu em Bertioga foi um marco da luta das mulheres negras como sujeitos políticos. Atualmente, fala-se mais da necessidade de um feminismo interseccional que dê conta das várias especificidades de ser mulher. O discurso universal vem sendo combatido com mais força, porque seria excludente no sentido de que as opressões se dão de modos diferentes. Uma mulher branca de classe média não sofre o mesmo que uma mulher negra pobre.
Durante muitos anos, senti essa dificuldade com algumas feministas, assim como, com militantes do movimento negro. Patricia Hill Collins explica essa invisibilidade das mulheres negras. Ela conta que quando as mulheres brancas não podiam votar nos EUA, um dos argumentos usados por elas foi de que os homens negros já votavam e isso poderia ser um risco para a população branca. Ou seja, homens brancos votavam, homens negros também e depois o direito teria que ser estendido às mulheres brancas. Mulheres negras seriam invisíveis do ponto de vista político. Por mais que tenhamos galgado alguns espaços, a dificuldade de se respeitar as mulheres negras em alguns debates e lugares continua.
Há uma tentativa de se silenciar mulheres negras. Conheci diversas feministas negras que passaram por isso, e agora, com a minha geração, sinto na pele. Uma vez, numa discussão com a página “Moça, você é machista”, fui banida. E fui porque reclamei de um post racista e exigi retratação. A resposta da página foi: “você tem problemas de interpretação de texto; deve ser analfabeta funcional”. Ou seja, recorre-se ao racismo, para tentar nos calar. Porque, claro, como negra, eu só poderia ser analfabeta. Que tipo de feminismo é esse?
Recentemente, passei por outra situação parecida: ao reclamar de um post sobre o Dia da Consciência Negra, feito por uma feminista conhecida, fui obrigada a ler: “entendo que você não tenha formação…”, além de ter sido chamada de burra e perigosa. Como uma pessoa que não me conhece pode afirmar que eu não tenho formação? Por que algumas feministas brancas recorrem a esse tipo de argumento? Ela havia feito um post equivocado sobre o assunto; quando homens querem falar sobre feminismo, vejo pessoas reclamando. Então, por que feministas brancas elegem-se como “mestres” nesse assunto e depois, ainda por cima, rechaçam mulheres negras que sentem na pele o peso do racismo? Por que nosso lugar de fala não é respeitado? E, mesmo, que eu não tivesse formação, minha fala deveria ser deslegitimada como militante negra? Se eu não tivesse formação, seria muito por conta desse ranço escravocrata que impede nosso acesso a certos espaços.
Como escrevi num outro texto: até quando se dará poder ao poder que se condena? Até quando aviltarão a capacidade intelectual e cognitiva das feministas negras? Até quando feministas brancas silenciarão quando esse tipo de atitude acontecer? Como falar em sororidade em meio a tanta hostilidade? Daí dizem: “ah, mas deve ser um mal entendido; fulana não falaria isso”; “mas, não foi racismo”. Pessoas não negras querendo nos ensinar o que é racismo. É a dupla violência: além de ter sido desrespeitada, ainda tenho que ouvir que não foi bem assim. E não é justamente contra isso que a gente luta? Por que com as mulheres negras dá-se o benefício da dúvida a quem ofendeu?
Mais do que necessário repensar certas atitudes. De novo: ser oprimido não é desculpa para legitimar opressão. Nossas falas precisam ser respeitadas e ouvidas. Que tipo de feminismo estamos construindo? Reconhecer privilégios é necessário e a consciência de não se reproduzir opressão também.
Não pedirei “afasta de mim esse cálice (cale-se)”. Eu mesma afastarei esse cálice (cale-se) de vinho tinto de sangue.
* Não gosto muito de falar sobre toda minha formação, mas só para sambar na cara de algumas feministas por aí, vamos lá: Djamila Ribeiro é aluna do Programa de Pós Graduação em Filosofia da Universidade Federal de São Paulo; Pesquisadora bolsista na FAPESP; Membro fundadora do MAPÔ – Núcleo de Estudos Interdisciplinar em Raça e Gênero e Sexualidade da Unifesp; Membro da Associação Internacional de Mulheres Filósofas e da Simone de Beauvoir Society. Tem artigos publicados em revistas de Filosofia e já apresentou trabalho nos EUA (Universidade do Oregon) e Argentina (Universidade Nacional de La Plata). Feminista negra desde o nascimento. Mãe de Thulane.