Confesso que passei por muitas fases antes de começar a escrever esse texto (talvez até o final dele eu avance uma casa ou retroceda cinco…). A primeira motivação dele foi o mal estar provocado em amigas feministas negras quanto à escolha da figurinha carimbada quando o assunto é apropriação cultural, Claudia Leitte, como rainha de bateria da escola de samba Mocidade Independente de Padre Miguel. Claudia Leitte, mulher branca, que pouco ou nada tem a ver com o mundo do samba (a música que ela gravou com Ricky Martin chamada “Samba” é um pop), com algum samba no pé, é verdade, a “nêgalora”, escolhida para ocupar um posto de destaque, numa escola cinco vezes campeã do carnaval carioca, de enredos como “Vira virou, a Mocidade chegou”, e “Chuê chuá, as águas vão rolar”. Não posso me furtar à pergunta que, no fundo, inquieta a todos aqueles que de alguma forma se incomodam com Claudias Leittes, Sabrinas Sattos e Suzanas Vieiras (sobre ela, tenho concessões importantes a serem feitas): se essas celebridades brancas foram escolhidas e convidadas para ocuparem espaços de rainha ou madrinha de bateria em detrimento de outras mulheres, de que mulheres estamos falando?
Ora, falamos das mulheres de dentro da comunidade, que fazem parte da história da escola e do dia a dia daqueles que têm as agremiações entre seus valores sagrados, como religião e futebol. E, claro, essas mulheres da comunidade são, em sua maioria, mulheres negras, e a quem o samba é, de fato, pertinente.
Aqui, vale destacar a diferença entre “rainha de bateria” e “madrinha de bateria”.
Até o final dos anos 90, a diferença entre rainha de bateria – mulher da comunidade, escolhida pelos ritmistas – e madrinha de bateria – mulher de dentro ou de fora da comunidade, mas que ocupa o posto a convite da direção da escola – era respeitado. Depois disso, as escolas passaram a usar o termo “rainha da bateria” para designar a mulher que estivesse representando a ala. Entretanto, há de se chamar a atenção para o que podemos dizer ter sido o primeiro convite feito a alguém de fora da comunidade para ocupar um lugar de destaque entre a ala das passistas. Na década de 60, Natal – então patrono da Portela – convidou Marisa Marcelino de Almeida, moradora de Olaria, para fazer parte desse grupo da Agremiação: nascia a “Nega Pelé”, que alçou voos maiores e ganhou o Estandarte de Ouro em 1977. Junto com ela, Gigi da Mangueira – mulher branca, loira, de olhos verdes e classe média de Ipanema – em 1962; Monique Evans, em 1984. O certo é que – madrinha ou rainha de bateria – a prática pode não ser nova, mas o carnaval não tinha o apelo midiático que tem hoje.
O que eu NÃO quero dizer com isso: que mulheres brancas não deveriam ocupar postos como de rainha e/ou madrinha de bateria – até sou a favor, desde que elas sejam cria da comunidade, como Bruna Bruno – rainha de bateria da União da Ilha do Governador. Entretanto, devemos problematizar também a questão de que a mulher branca sempre será mais facilmente aceita num espaço do que a mulher negra, uma vez que a primeira está dentro dos padrões de beleza socialmente aceitos – ainda que essa aceitação recaia apenas na cor da pele. Mesmo que esse espaço seja, historicamente, pertinente às mulheres negras.
O que eu QUERO dizer com isso: nós, mulheres negras, já ocupamos tão poucos espaços de destaque – seja num carnaval, numa televisão, numa empresa, na sociedade como um todo – que qualquer espaço que nos seja tirado (vamos ver porque “tirado” e não apenas “negado”) diminui ainda mais a nossa representatividade, o que tem efeitos diretos na nossa autoestima, pois nos vemos perdendo (mais) esse espaço para um grupo social cuja representatividade já é enorme.
Dessa forma, é gratificante ver que das doze escolas de samba do grupo especial do Rio de Janeiro, sete trazem rainhas de baterias negras (Beija-Flor, com Rayssa Oliveira; Imperatriz, com a atriz Cris Viana; Mangueira, com Evelyn Bastos; Salgueiro, com Viviane Araújo; São Clemente, com Raphaela Gomes; Unidos da Tijuca, com a atriz Juliana Alves; e Viradouro, com a ex-diretora da ala das passistas, Angela Santos); das cinco escolas cujas rainhas são mulheres brancas (ou socialmente lidas como brancas), duas delas são nascidas e criadas nos bairros das escolas: Patrícia Nery, nascida e criada em Madureira, é rainha de bateria da Portela; Bruna Bruno, nascida e criada na Ilha do Governador, é a rainha de bateria da escola que leva o mesmo nome do bairro. Em minha crítica, não incluo a terceira coroação de Susana Vieira como rainha de bateria da Grande Rio, desbancando nomes como o de Deborah Secco e Paloma Bernardi. Acredito que todo engrandecimento que se possa dar a uma mulher mais velha é válida: numa sociedade em que pessoas mais velhas são desvalorizadas, ter uma mulher de 72 num posto ocupado por mulheres quase prioritariamente 30 anos mais jovens é de se comemorar (minhas ressalvas quanto à Grande Rio devem-se a outros fatores…). “É gratificante”, mas não me parece suficiente, porque, a respeito das rainhas de baterias brancas que fazem parte da comunidade, não podemos deixar de perguntar: mas quantas mulheres negras existem nessas comunidades que poderiam perfeitamente ocupar esses lugares?
E aí que volto à questão de não estarmos lidando apenas com uma negação de espaço, mas de apropriação mesmo.
Se analisarmos as origens dos desfiles das Escolas de Samba, encontraremos os Ranchos Carnavalescos dos baianos e baianas da Pequena África, no Rio de Janeiro do fim do século XIX, início do XX. Junto aos Ranchos, os chamados “Blocos de Críticos” (também chamados de “Blocos de Sujos”) também foram precursores das Agremiações atuais. Tais blocos usavam da ironia e da crítica ácida para falar de política e das situações das populações.
Tanto os Blocos quanto os Ranchos usavam de uma importante tática – a chamada “penetração urbana”: adentrar a cultura negra, sua música, seus recados, em espaços urbanos quase sempre restritos à própria circulação espontânea das pessoas negras. Portanto, essa penetração urbana se tratava de uma importante arma de resistência cultural negra, dos valores afro-brasileiros.
A musicalidade, a retórica e a penetração urbana foram legados dos Ranchos e Blocos Críticos acolhidos pelas primeiras Escolas de Samba, que transformavam o centro do Rio de Janeiro em seu palco durante o Carnaval, impondo um protagonismo das suas populações negras. O Carnaval era o momento de destaque do povo negro, apesar das elites brancas. Embora se trate de um período curto, este tempo sempre foi sabiamente utilizado como uma oportunidade para o exercício aberto da resistência negra – que acontecia o ano todo, mas se exibia orgulhosa durante o Carnaval. E não: não se trata de uma concessão branca. Foi sim uma conquista de nossos ancestrais.
No entanto, com o tempo, os aportes governamentais (especialmente pelas mãos de Vargas) e, posteiriormente, da Indústria Cultural acabaram por cooptar boa parte dos significados de resistência negra com o passar dos anos – o que culminou com o atual modelo de Carnaval de Escolas de Samba no Rio e em São Paulo. Apesar disso, entraram para a história desfiles clássicos de Escolas tradicionais – como Portela, Salgueiro e Vila Isabel – por vezes retratando e relançando holofotes nas temáticas, estéticas e discursos de resistência. Como esquecer a Kizomba trazida na festa da raça da Vila, ou os tambores do Salgueiro ou Madureira, onde meu coração (em particular) se deixa levar até à Portela?
E é esse atual modelo de Carnaval que abre caminho para vermos Claudia Leitte e Sabrina Sato ocupando lugares de mulheres negras e/ou da comunidade: eis uma das provas de que o Carnaval Carioca é hoje uma grande indústria. Não arrisco dizer que é apenas uma indústria que atende, por exemplo, a interesses de grandes veículos de comunicação. Isso porque existem comunidade e história por trás dessas Escolas: uma comunidade que sustenta e se orgulha de nomes que estão gravados na história do samba como Natal, Candeia, Cartola e Ismael. Entretanto, a escolha de (sub)celebridades para defender um posto como o de rainha de bateria é, nas palavras de Maurício Mattos, presidente da Acadêmicos da Rocinha, apenas “um grande marketing para as escolas”, uma vez que “a rainha de bateria não tem a autenticidade das passistas [da Escola]”. Ou seja, abre-se mão de homenagear e valorizar as mulheres que cresceram ali naquele espaço e, em seus lugares, colocam aquela que tiver mais pra pagar. Apesar de algumas rainhas serem convidadas e não pagarem para ocuparem esse posto, como Viviane Araújo no Salgueiro ou Luma de Oliveira na Tradição, em algumas escolas, quem tiver mais dinheiro destrona a antecessora e se consagra rainha de bateria. É o Carnaval como comércio vendendo o lugar que é historicamente das mulheres negras das comunidades.
A questão não se esgota aí e há muitas nuances para serem entendidas e levadas em consideração, como: apropriação cultural; a imagem de mulher negra que se passa em épocas de carnaval; quem patrocina e por que se patrocinam enredos como “Soy loco por ti, América – A Vila canta a latinidade” com um Simon Bolívar de dez metros de altura desfilando pela Sapucaí (esse desfile foi sen-sa-ci-o-nal). Mas é preciso avançar no debate e não nos determos na crítica dessa ou daquela celebridade. Elas são a lasca de gelo na superfície da ponta de um iceberg. Lá embaixo é que o bicho pega (e também joga…)
_________________________________________________________________
Imagem destacada: Blog Visão Aquila
Referências: Ribeiro, Heloisa, and Lucelena Delamaro. “A festa do corpo.” Caderno Virtual de Turismo 2.2 (2002): 2002.
Schneiders, Sônia. “Rainhas de Bateria no jornal O Dia: um estudo de representações.” Contemporânea 8.2 (2010): 3-17.
Filho, Francisco Alves. “Quer ser rainha da bateria? Basta pagar”. Disponível em: http://www.terra.com.br/istoe-temp/edicoes/2086/imprime155069.htm.
http://luzesreluzente.blogspot.com.br/2010/03/passista-nega-pele-e-exaltada-por.html
http://www.rio-carnival.net/
Agradecimento ao pesquisador e músico negro João Peçanha, pela troca de ideias sempre bem-vindas.