Imagine viajar 250 anos atrás até o centro universitário de Tombouctou no Mali, partindo de Juffure no Gâmbia, cidade natal do jovem guerreiro mandinga Kunta Kinte. Infelizmente esse sonho e também seu casamento nunca se realizaram devido aos horrores do tráfico e escravização de seres humanos, sequestrados em barbárie de suas vidas e dos seus territórios, trazidos para servir como mão de obra escravizada na América.
Esse é o início da série Raízes que estreia hoje no History Channel, quase 30 anos após o original ter ido ao ar nos Estados Unidos. Fala dos males da escravização e como esse crime contra a humanidade, e os mecanismos que o naturalizam e justificam, ainda permanecem. O tema é sobre o trabalho escravizado, mas também é sobre a saga familiar dos Kintê, através de gerações.
A história baseada em fatos reais é narrada na obra Raízes: A saga de uma família americana, publicada em 1976 e que rendeu a Alex Haley o prêmio Pulitzer, ele mesmo um dos membros da família Kinte, fato que muitos contestam. Ainda que alguns detalhes sejam controversos, a estória é uma excelente oportunidade de aprendizado. Restam apenas duas possibilidades sobre o que você deve fazer hoje a noite – conhecer ou rever a série.
A primeira adaptação para televisão foi assinada por David Wolper que assinou A Fantástica Fábrica de Chocolates em 1971 e Los Angeles: A Cidade Proibida em 1997. Agora é seu filho, Mark Wolper, um dos nomes centrais da série junto de Levar Burton como co-produtor executivo, Mário Van Peebles como diretor, Charle Murray como co-autor e Emayatzy Corinealdi, Anika Noni Rose, Carol Sutton, Emyri Crutchfield, Forest Whitaker e Laurence Fishburne no elenco.
Tais citações são mais ainda importantes se levar em conta que Raízes foi ao ar nos Estados Unidos no contexto do movimento #BlackLivesMatter (Vidas negras importam) e #OcarSoWhite (Oscar tão branco). Assim, retomar uma narrativa que contribuiu para que as pesquisas históricas sobre a escravização e suas consequências fossem ampliadas, precisa ser considerada num momento tão capital para a luta pela vida e liberdade de pessoas negras diante de uma branquitude que acirra seus valores retrógrados.
Esse talvez, para além de detalhes técnicos ou qualquer controvérsias sobre seus propósitos ou métodos, seja a grande conquista desse novo momento de Raízes, uma nova oportunidade de reconstruir caminhos a partir de pesquisas e experiências históricas acumuladas tanto lá fora quanto aqui dentro, sobre a própria estória em si e sobre o que ela representa, inclusive em relação aos debates feministas negros e as possibilidades que as novas mídias oferecem.
Sobretudo agora que os debates raciais estão pegando fogo: morte de mulheres e homens jovens negros em muitos países do mundo, com destaque para o próprio EUA, onde o movimento #BlackLivesMatter é crucial para a visibilidade e justiça nos casos de assassinato, discussões e ações no mundo inteiro sobre feminismo negro e movimento de mulheres negras lutando contra todo tipo de ameaça aos direitos civis em países como Honduras e aqui no Brasil.
Não é uma moda, uma tendência, “ardor cívico” ou qualquer desejo motivado pela branquitude de promover uma “exame de consciência nacional” (ou internacional, nesse caso). Raízes é o resultado de um esforço continuado de toda uma população para que sejamos considerados como produtores, executivos, atores, agentes. Para que as estórias narradas em Raízes, que congrega experiências comuns a todas as populações sequestradas, traficadas e escravizadas, sejam recontadas.
Por isso e mais que nunca, devemos ter uma olhar cuidadoso sobre a série e sobre as discussões que ela provocará: estamos falando apenas de Kunta Kinté ou sobre a história de um povo que respira resistência? Estamos usando essa história pra criar canais de diálogo ou apenas “surfando na onda” dos debates raciais? Queremos reconhecer a escravidão como um crime contra a humanidade de pessoas negras ou basta a espetacularização e humilhação dos nossos corpos na tv?
Ficam as perguntas que esperam respostas sinceras.
Hoje à noite não seremos espectadores apenas, mas sujeitos dispostos à fazer reflexões e destruir a inércia do pensamento simplista de que somos apenas vítimas, de que nunca reagimos e de que a nossa história precisa ser contada com violência sem propósito ou como fetiche. Inclusive para entender quais mecanismos e narrativas estão sendo denunciados e como.
Como denuncia a própria série – não se compra um escravizado, a branquitude precisa fazer essa construção nos planos simbólicos e concretos. E aqui reside um ponto que precisa ser completamente enegrecido, a diferença com que cada grupo de telespectadores vai entender o que será mostrado. Para alguns será a exposição de nossos corpos, para outros denúncia.
A diferença é que, nos dois casos, a familiaridade com os debates etnicorraciais ou interesses privilegiados farão toda a diferença na interpretação da série, sobretudo das personagens ou situações que seriam mais controversas como o fato de comunidades se sequestrarem entre si para que fossem vendidas em prol do lucro de pessoas brancas.
E até mesmo o simples fato de se pensar sobre isso será menosprezado. Daí a importância de considerarmos as opiniões dos profissionais negros diretamente envolvidos no processo, lembrando que Levar Burton se coloca na figura de um griot cuja responsabilidade é transmitir o conhecimento, quais seus objetivos e as dificuldades durante a filmagem da série
Somos muito mais
Talvez um dos aspectos mais interessantes de Raízes seja a sua capacidade de disputar narrativas, de uma maneira muito concreta, crua e ao mesmo tempo repleta de sutilezas. O momento de sonho e também de violência, em que o tempo corre com outra velocidade, são um dos exemplos disso. Por vezes até mesmo Kunta terá sua visão turvada pela dor, sua humanidade lhe ensinará que há momentos de se retroceder.
Em outros momentos, ficarão evidentes que desde sempre precisamos buscar soluções muito práticas para enfrentar as violências do trabalho forçado, da privação de liberdade, das humilhações e castigos em nossa carne e nas nossas almas. Uma delas foi e ainda é o pleno domínio da comunicação como estratégia essencial para quebrar ao menos um dos elos que das correntes que nos aprisionam.
Mas Kunta nos convida a muito mais. Ele nos chama para a luta por nossa liberdade e humanidade como pessoas negras, de uma maneira que só os verdadeiros heróis conseguiriam, se fazendo compreender e motivando até mesmo por aqueles que estão combalidos e já não acreditam que existe alternativa possível. É por isso que não há outra escolha que não ver ou rever a série.
#NãoAoTrabalhoEscravo
A série também está atrelada a questão do combate ao trabalho escravo que foi tardiamente reconhecido pelo governo brasileiro apenas em 1995, que é bastante sensível ainda hoje, um momento de nossa estória em que nunca houve tantas pessoas escravizadas. Convidamos você a também se apropriar dessa bandeira, pensando na vulnerabilidade da população negra a essa violência em função do racismo que impacta cada aspecto de nossas vida.
Pensando por exemplo em como nossas crianças têm sido exploradas, muitas vezes em situação de tamanha complexidade que não se pode nem mesmo denunciar o fato, sob pena de expormos uma mãe negra como alguém que pratica e permite maus tratos contra seus filhos enquanto aqueles que realmente são beneficiados com essa exploração, são vistos como pessoas brancas bem intencionadas e isentas de culpa.
Pensemos nas estatísticas que dão conta que a totalidade de meninas trabalhando como domésticas na cidade de Brasília são negras. A lei tal como é hoje é insuficiente para impedir esses abusos, imagine com a ameaça de importantes e significativos riscos que colocariam em questão o conceito de trabalho escravizado.É por isso que convidamos toda a comunidade de feministas negras a refletir sobre #NaoAoTrabalhoEscravo junto com a gente.
Chama as amigues
O assunto é tão sério e ver Raízes é tão especial que recomendamos seriamente que você amiga, prepare os lencinhos. Isso não é drama, é apenas uma necessidade bem concreta. E por favor, convida alguém para ir para a sua casa ou vá para a casa de alguém. Não precisa de pipocas e talvez nem de lencinhos, mas precisa de companhia das amigas pretas nesta hora.
Porque assim, vai acontecer aquele momento em que você precisará estar com alguém que ama ou que partilha de identidade com você. A série é sobre isso. Então já combina de dormir na casa de alguém para não dar ruim. Ver Raízes sozinho é bom, é libertador, é uma lavada na alma. Mas junto é bem melhor. Vai fazer ainda mais todo sentido do mundo.
Então vem junto com a gente e mude seu avatar nas redes sociais. Uma das coisas mais bacanas é mudar seu avatar nas redes sociais através desse aplicativo Meu nome, Minha liberdade..