Por Jarid Arraes para as Blogueiras Negras
Muitos jovens brasileiros aprendem sobre o Banzo nas aulas de História nas escolas. O Banzo costuma ser descrito como uma espécie de “estado de espírito” que acometia os africanos trazidos ao Brasil como escravos – explica-se geralmente que as pessoas negras entravam em um estado de “melancolia”, com um forte sentimento de saudade da terra natal e desmotivação pela vida; por isso, muitos deixavam de comer e até cometiam suicídio. No entanto, há autores que questionam essa interpretação do Banzo. Marcos Antônio Chagas Guiamarães, Doutor em Psicologia Clínica, acredita que o Banzo sempre foi descrito de forma muito romantizada e folclórica. Para ele, essa abordagem trata do fenômeno como se fosse um acontecimento “sobrenatural” que pousava sobre os africanos, o que tira o peso do sofrimento psíquico sofrido pelos escravos negros: a depressão.
Os transtornos mentais são cercados de enganos e estereótipos preconceituosos. Não é incomum, por exemplo, a ideia de que a depressão clínica é um transtorno “fútil”, uma simples invenção de quem não tem problemas e, portanto, “não tem do que reclamar”. Por isso é tão comum o ditado popular que diz que depressão é coisa de gente rica, já que quem é pobre supostamente tem muitos problemas e, portanto, não tem “tempo” pra sofrer de depressão. Essa trivialização é extremamente nociva para a saúde mental e emocional da população, mascarando o sofrimento legítimo de muita gente, e se agrava quando feita em relação às camadas mais pobres do país. Uma vez que, segundo dados do IBGE, a maior parte da população pobre brasileira é formada por pessoas negras, não é difícil fazer a conexão: a saúde mental das pessoas negras e pobres, os descendentes dos mesmos escravos que sofreram “Banzo” há 500 anos, é extremamente ignorada.
O Banzo é um exemplo de como a saúde mental da população negra é negligenciada. Como se não bastasse o contexto de exclusão gerado pela condição financeira desfavorecida, o racismo também potencializa o quadro de sofrimento desses indivíduos. Sabendo-se que a exclusão social e a discriminação geram profunda tristeza, letargia e desespero, acabam com a autoestima, a esperança e a motivação de vida, e levam até mesmo a outros problemas, tais como a dependência química, não é difícil concluir que há uma quantidade enorme de pessoas negras passando por transtornos psicológicos sem receber qualquer tipo de auxílio.
Os cidadãos negros se encontram em um contexto extremamente hostil, onde a permanência exorbitante da discriminação racial torna muito difícil enxergar-se de maneira positiva. Por isso é tão complicado para as mulheres e homens negros construirem e manterem um nível de autoestima saudável. Além de prejudicar severamente a autoimagem de seus alvos – ou seja, a percepção de si mesmo como indivíduo com valor e relevância social -, o racismo dificulta o acesso a atividades e papéis sociais considerados importantes. Empregos e profissões de qualidade, ou mesmo moradias ou locais para o consumo são comumente barrados para as pessoas negras, gerando um efeito “bola-de-neve”: como são marginalizados pela sociedade e não são incluídos naquilo que a cultura julga importante, muitas dificuldades emocionais e psicológicas aparecem; afinal, pertencer a uma comunidade, ser bem visto dentro dela e manter laços sociais de cooperação são fatores indispensáveis para o bem estar do ser humano.
É preciso ainda pensar sobre as pessoas que estão em situação de rua: quantas delas são negras e quantas vivem com transtornos mentais? São incontáveis os exemplos de moradores de rua amplamente conhecidos em suas cidades que estão periodicamente em surto ou apresentam comportamentos que sugerem algum transtorno mental. No entanto, esses fatos só são conhecidos por depoimentos informais, uma vez que não há uma quantidade representativa de trabalhos de pesquisa e análise nessa área específica. É difícil fazer uma estimativa apurada quanto a questão da Saúde Mental e as relações étnico-raciais no Brasil, já que os dados não são devidamente colhidos. Quando pesquisas são feitas, a cor do indivíduo atendido não é registrada e analisada criticamente; faltam dados e estudos concretos sobre esse aspecto, de forma que a execução de políticas públicas específicas e eficientes é muito improvável. Além disso, o acompanhamento de um psicoterapeuta é um privilégio para poucos, um luxo que somente grupos muito bem delimitados conseguem manter.
O combate ao problema se torna ainda mais difícil, uma vez que a cultura promove a resignação e a habituação ao sofrimento do outro, principalmente quando esse outro quase não é visto como um ser humano similar. O racismo levanta e fortalece barreiras difíceis de transpor, inibindo a presença de empatia e tornando os cidadãos “comuns” insensíveis aos problemas dos excluídos e marginalizados. É por isso que é necessário questionar a origem, a descrição e a perpetuação do Banzo que existiu no passado e que continua existindo hoje. O Banzo é o estereótipo do pobre que não tem depressão ou transtorno pós-traumático e é a representação única do negro que vive sorrindo e sambando.
Por que pessoas negras desenvolvem transtornos mentais e por que não recebem auxílio psicológico? O racismo precisa ser apontado, revelado e discutido. Sem combate ao racismo, não há saúde pública mental no Brasil. Não é mais possível manter a folclorização do sofrimento: a mente cuidada não pode ser um privilégio de poucos.