O feminismo negro tem suas raízes no rompimento do silêncio das mulheres negras frente às violências do dia a dia de uma sociedade racista, misógina, sexista, homofóbica, intolerante religiosa, que se traduz nos privilégios da branquidade em formar hierarquias. Ou seja, feminismo negro vem de mãos dadas com o processo de escravização do povo sequestrado no continente africano. O que se chama de primeira, segunda e terceira onda do feminismo tem a ver com os momentos em que esse pensamento se remodela em relação ao posicionamento da mulher negra em relação ao mundo, e, sobretudo em relação a si própria. É o que se chama de processo ontológico na formação do pensamento feminista negro.
A terceira onda do feminismo fala sobre o “empoderamento” do corpo da mulher negra. Gostem ou não do termo, a verdade é que “empoderar” o corpo feminino negro é investir em dois argumentos centrais: o amor e a agência.
O amor é a forma revolucionária de sobreviver a todo o sistema hierárquico que marca diferenças, exclui e inferioriza a mulher negra nas sociedades ocidentais. Audre Lorde é muito firme ao dizer que temos que CONSCIENTEMENTE ser gentis umas com as outras (mulheres negras) até que isso seja um hábito, porque o amor era da nossa natureza e foi a primeira coisa a SER ROUBADA de nós: o amor das mulheres negras, uma pelas outras. Quando Audre Lorde fala que o amor era da nossa natureza, ela faz uma reflexão sobre a nossa ancestralidade africana e todas as amarras a que as mulheres negras foram presas, que vai muito além das correntes e chega nas emoções, na afetividade, nos sentimentos. Uma vez que a população negra foi desumanizada para ajudar a justificar a violência e escravização desse povo, logo, emoções não estariam presentes na desumanidade desse povo. Mas o amor de umas pelas outras precisa começar de dentro, de si.
Esse não é um artigo de autoajuda, e muito menos romântico! Este é um artigo revolucionário de cunho politico. Invoco aqui TODAS AS GAROTAS/MULHERES NEGRAS que se sentiram mal porque a calça que finalmente cabe no quadril, não cabe na cintura; aquelas que achavam que seu cabelo era/é feio; aquelas que por algum motivo foram privadas de estar em algum espaço por causa do seu fenótipo; aquelas que não puderam ter diagnósticos apropriados porque não se entende a saúde física e mental da população negra; aquelas que apanharam ou sofreram qualquer tipo de violência física, psicológica ou emocional pelos seus parceiros, amigos, chefes ou alguém que pensou ser superior a elas; todas aquelas que não encontram produtos para o cabelo ou um cabeleireiro que conheça as peculiaridades dos nossos cachos, que não são “encaixadas” no perfil de uma universidade ou mercado de trabalho, que um dia choraram porque esse sistema de “normalidade” é opressor e nem sabemos verbalizar, apenas sentir; entre tantas outras formas e padrões que fazem com que nos sintamos mal com o nosso ser, corpo, mente e espírito. Esse é um artigo que fala da formação dessa comunidade, que não se conhece, mas reconhece as opressões do nosso dia a dia.
Sendo assim, amor é sim muito revolucionário e passa a tirar o sentido dos padrões e formas de estereotipar o corpo da mulher negra, não é? Já pensou a gente começa a amar a comunidade feminina negra? Causaríamos ameaça nos privilégios da branquidade, no mínimo. Branquidade está presente para marcar espaço, localizar a mulher negra como “outra”, inferior, exótica. Intuitivamente, entendemos a mensagem muito bem: não se deve amar quem está encaixado nessas classificações. Apenas se sofre. Patricia Hill Collins, outra feminista negra estadunidense, fala que somente o amor por si, amor entre indivíduos pode delinear, empoderar e manter a MUDANÇA SOCIAL.
Esse poder do amor como ato revolucionário é fundamental para entender o processo de agência. A agência é o ato de agir com autonomia, ter controle do próprio corpo e a possibilidade de tomar decisões sobre ele e lutar por esse direito. Uma boa definição de agência pode ser entendida através das palavras de Amber Hollibaugh:
“o feminismo deve ser zangado, um movimento intransigente que insiste pelo nosso direito de foder, nosso direito à beleza dos nossos desejos femininos individuais, no que diz respeito às imagens e estruturas que distorcem isso” (tradução livre).
A agência faz um papel fundamental em perceber as facetas das identidades da mulher negra, considerando sua raça, gênero, classe, identidade nacional, religião, entre outras características que marcam a singularidade de cada uma de nós. Isso é a chamada interseccionalidade, entendendo que a mulher negra está além de dados estatísticos, sem essencializar sua imagem dentro dos parâmetros da branquidade. É também acolher as contradições das nossas próprias identidades, deixando-as mais livres para ser e existir. Um exemplo dessas contradições está na marcha das vadias. Trata-se de uma marcha que denuncia o absurdo de colocar a culpa na mulher quando ela é violentada, seja pelo namorado ou por um estranho; seja a estuprada uma prostituta ou freira. Esteja ela usando minissaia ou burca. A marcha procura dar visibilidade aos sentimentos e posicionamentos da mulher em relação à violência. Somos todas vadias e não estamos pedindo para ser violentadas.
Entretanto, como a mulher negra entra nessa marcha das vadias? Afinal, já temos nossa representação social como essencializada através da hiperssexualidade, curvas e utilidade do corpo para satisfação do prazer masculino.
Pra que adotar a marcha das vadias como slogan da mulher negra?
Feministas negras têm insistido nessa pergunta e feito reivindicações para a marcha das vadias em considerar as peculiaridades da violência contra a mulher negra.
É verdade que as violências sofridas pelas mulheres brancas NÃO são iguais às violências sofridas pelas mulheres negras. Isso é um fato. Mulheres negras são marginalizadas em todos os sentidos, sub-representadas em todas as categorias tanto de mercado de trabalho quanto de “figuras de respeito” na sociedade.
Por isso Amber Rose, uma ex stripper, é vista como uma figura tão negativa. Além de stripper, ela tem a audácia de ter orgulho da antiga profissão e para “piorar” ela é mãe, mas continua se vestindo como uma vadia. Opinião pública vai à loucura.
Não entrarei profundamente em discussão sobre a figura/personagem que Amber Rose tem na mídia, mas alerto que acho importante termos um ponto de vista critico e não aceitar ou concordar com tudo o que é dito publicamente por essa pessoa. Entretanto, para finalizar o tema sobre a terceira onda do feminismo com um exemplo ilustrativo, bem humorado e bastante provocativo, coloco na roda o vídeo em que a Amber Rose faz sua muito comentada “CAMINHADA SEM VERGONHA” (Walk of NO Shame).
Contextualizo: A Caminhada da Vergonha (minha tradução do “The walk of shame”) é conhecida como a mulher que sai da casa do cara na manhã seguinte com a roupa da noite anterior. Visivelmente é um sinal que está voltando pra casa depois de uma possível noite de sexo. Isso deveria ser entendido como vergonha para a mulher e constrangimento moral para a sociedade que assiste.
A Caminhada SEM vergonha é um vídeo que leva duas mensagens: uma, óbvia, sobre a exaltação do corpo da mulher que se auto-classifica como negra – Amber Rose. Sentir-se poderosa, sem vergonha de vivenciar a sexualidade, o corpo e sem medo dos olhares que recebera na rua.
A segunda mensagem, e essa tem sido criticada em muitos canais de mulheres negras e homens negros no youtube, é que o vídeo apoia a “putaria” (horerism) – como se a putaria fosse algo absolutamente negativo. É um tapa na cara da sociedade branca, classe média e conservadora, mudando totalmente o que se espera desse comportamento e dizendo que é possível aceitar as diferentes sexualidades, formas de experimentar o corpo e explicar para as crianças sobre essa diversidade. Dizer que a Amber Rose é um modelo de vida para a filha de um homem branco com figura de “machão” que dirige uma caminhonete é desconstruir o ideal da mulher a partir do ponto de vista do machismo. O mesmo acontece quando os homens da obra, ao invés da previsível cantada, endereça o elogio ao poder de agencia que a Amber tem sobre o próprio corpo.
O vídeo usa da ironia para deixar um desconforto.
O desconforto pode ser uma forma estratégica de educar a sociedade em respeitar diferentes performances de raças, gêneros, sexualidades, religiosidades, prazeres, desejos, expressividades. Se você acredita no amor romântico e não gosta de sexo casual, esse artigo é também pra você ver que existe mais de uma maneira de amar, e que não tem absolutamente nada a ver com romance, mas com o ato revolucionário de “celebrar o próprio corpo”. Ser uma vadia e participar da marcha das vadias pode ser uma forma de balançar a estrutura de poder. É rejeitar a representação e o imaginário cristalizado sobre o meu corpo de mulher negra como o de uma vadia inferior e barata. Desta vez eu reinvento língua e linguagem para ressignificar o meu corpo. Sou vadia porque quero, e levo comigo minhas contradições e interseccionalidades comigo, amando todas elas: sou brava, sou carinhosa, sou inteligente, tenho inseguranças, tenho agência, tenho futuro, sou humana, sou negra!
Então, assim podemos começar a contar uma nova história sobre o processo de DESCOLONIZAR o corpo da mulher negra, colocando em evidência as nossas particularidades, conhecimentos, valores, formas de amar a partir de um prisma totalmente diferente. E essa história talvez possa começar com: “Era uma vez uma poderosa, inteligente, bonita, gorda, lésbica, vadia negra…”
O final é feliz porque ela se ama para sempre. Fim.
Bibliografia:
Amber Hollibaugh. 1996. “Desire for the Future: Radical Hope in Passion and Pleasure”. In Feminism and Sexuality: A reader. Eds Stevi Jackson and Sue Scott, 1-13. New York: Columbia University Press.
Audre Lorde. 1984. Sister outsider : essays and speeches. Trumansburg, NY : Crossing Press
Não Me Kahlo. Comunidade no Facebook. 22/09/2015. Caminhada SEM Vergonha. https://www.facebook.com/NaoKahlo/videos/500267536813584/
Patricia Hill Collins. 1991. Black feminist thought: knowledge, consciousness and the politics of empowerment. New York; London: Routledge.