Mais uma vez o Festival da Mulher Afro-Latino-Americana e Caribenha, uma realização da Griô Produções com apoio do coletivo Pretas Candangas, celebra a arte do encontro. Mulheres negras em roda através de música, sarau negro, performances, espetáculo teatral, moda, artesanato, culinária, capoeira, literatura e oficinas de arte que tem como tema as griôs da diáspora. Honrando a primeira de nós e todas as demais que se sentaram diante de sua comunidade e em generosidade fizeram de si um pouco de todos, resignificando aquilo que é muito mais que uma infindável sucessão de um dia após o outro. Não mais, não mais. Somos afrolatinas, elas, tu e eu.
Conosco todas as mulheres negras do lado de cá do meridiano e tantas vezes acima dele, combatendo os mesmos problemas, as mesmas violências. Mais que isso, partilhando conhecimento, arte, cultura, culinária, modos de fazer. Falar sobre o Latinidades não poderia ser que não sobre a celebração desse pertencimento, com a mente voltada para a valorização da oralidade, aquela que torna possível que sejamos ao mesmo tempo nossa própria ancestralidade e o futuro, tudo aqui e agora. Que sejamos, como temos feitos desde tantos séculos, nós as primeiras a contar e escrever nossa própria História.
Essa com agá maiúsculo, tantas vezes negligenciada pelo ensino curricular que não versa sobre nossas oralidades, tradições, heranças. Nossa ancestralidade enfim, a quem será feita uma saudação no dia 23 de julho, no Museu da República às 9h30. Alíás, toda a programação está um ahazo. Desde a performance em comemoração ao Centenário de Carolina Maria de Jesus, a conferência de Ana Maria Gonçalves e Paulina Chiziane, mesa sobre sabedoria, ancestralidade, memória, política e sustentabilidade. Além da mesa sobre Feminismo Negro com a presença de Angela Davis, conferência com Patricia Hill Collins, o panfletaço da Marcha Nacional das Mulheres Negras que acontece em 2015.
Mais uma vez o Latinidades renova a alegria do estar em comunidade, de afrolatinidades. De falarmos sobre tudo aquilo que nos mantem vivas. As alegrias, as conquistas, as experiências e até mesmo a violência que através do debate se tornam alternativas, algo maiores que o silêncio. Somos ao mesmo tempo muitas e também uma só, na luta que oxalá é de todas. A certeza de que nós mulheres negras somos sujeitas de um saber imaterial imprescindível à concretização de uma sociedade onde a violência em função de raça, gênero, identidade de gênero, opção sexual, classe, idade, corpos e de lugar não mais existirão. Somos afrolatinas, elas, tu e eu.
Todas nos tornamos muito mais, e por favor não tomem minha colocação como menosprezo à violência sofrida que sinto em nossas peles e na dos nossos ancestrais, que existências escravizadas num passado distante que não teria nenhuma repercussão em nossas carnes ainda hoje. Conveniente para todos os interesses que nos querem fazer abdicar de uma identidade que tem a ver com rainhas, tradições, mitos, cultura, reinos, conquistas tecnológicas, militares, diplomáticas. Mas não para nós mesmas e sempre estivemos muito cientes disso.
É isso que o Latinidades celebra e discute esse ano, essa ancestralidade e os dias vindouros que cada uma de nós traz em si que nós faz sujeitas e não objeto do discurso. A responsabilidade de preservarmos e transmitirmos esse patrimônio. Um pertencimento que o mito da democracia racial e também o mito da identidade brasileira tem se esforçado a todo custo para invisibilizar e inviabilizar. Sem nossas griôs, deixamos de saber quem somos através de estórias contadas por nós mesmas e assim nos tornamos invisíveis e inviáveis, já não podemos existir.
É por isso que essa edição do festival é mais uma vez como se fosse uma grande árvore, frondosa em seus frutos: dança, música, cinema, beleza, políticas públicas, direitos humanos, feminismo, mídias digitais, tudo junto e misturado numa grande festa. Uma árvore sob a qual nos sentamos em roda e ouviremos nossas griôs, aquelas que guardam saberes de hoje e de outrora em suas existências e palavras. Que sejamos afrolatinas nós, tu e elas, todas, com alegria e responsabilidade de preservar e um pouquinho lá na frente, assumirmos nossa própria vocação enquanto sujeitas da oralidade. Somos afrolatinas, elas, tu e eu.
Obrigada Pretas Candangas!