Uma crônica sobre o passado

Meu pai me perguntou por que quando outro dia fui perseguida por um homem dentro da universidade, fiquei desesperada, por que não me impus, não ameacei, como tantas vezes faço em outras situações. Também não entendo o porquê. Sei é que só penso em fugir, me esconder, guiada pelo medo. Medo de que ao enfrentá-lo, ele me desse um tapa na bunda e saísse dando gargalhadas.

É dia 19 e na noite passada dormi com vontade de escrever, voltar a escrever. Lembrei do projeto de uma biografia da minha vó, pensei em escrevê-la em forma de contos e começar logo, antes que as memórias se perdessem. Porém, durante o dia, a vontade se escondeu. São 19 horas, lembrei de uma amiga lésbica que sofre repressão dos pais, lembrei da minha avó, mulher, negra e tantas vezes reprimida em longos 77 anos, lembrei de escrever, de contos e crônicas, lembrei de uma admirável mulher que foi minha professora e de como a vejo livre, independente de tudo e de todos, linda! Lembrei de tantas mulheres, lembrei de mim.

E assim, cheguei a um episódio do dia anterior também. Uma publicação de uma amiga do Facebook, sobre uma matéria em um site que dizia: “Natália, de 28 anos, andava por uma avenida movimentada de São Paulo com uma amiga. O rapaz que vinha na direção oposta se esgueirou entre as duas. Encarou-as de alto a baixo e soltou: ‘Sem calcinha vocês devem ser uma delícia’. Débora, de 29 anos, esperava o semáforo abrir para atravessar uma avenida. Foi abordada por um estranho que a convidava para um café. Puxou-a pelo braço, insistiu e depois começou a segui-la.

Thatiane, de 23 anos, estava numa festa. Sentiu alguém deslizar a mão por seu corpo. Ela se voltou para tirar satisfação, e o rapaz a chamou de vagabunda. Thatiane jogou o conteúdo do copo que tinha nas mãos sobre ele. Levou um tapa na cara. Laura tinha 14 anos, estudava no centro de Porto Alegre e saiu para almoçar. Três homens cruzaram seu caminho, passaram a mão no meio de suas pernas e discorreram sobre suas partes íntimas, com uma frase que jamais poderia ser publicada”. E no momento, pensei COMO PODE? Tantas mulheres conhecidas de uma só com essas histórias? Achei impossível.

Mas então, lembrei. Estava escondido em minha mente, mas tão entranhado, que jamais esquecerei. Lembrei de uns 6 anos atrás, hoje tenho 19, é, eu tinha 13. Foi em uma tarde de domingo, voltava com uma amiga da casa de uma tia. Andávamos por uma avenida, quando senti um impacto contra os meus glúteos e risadas, mais de uma, escandalosas, masculinas, irônicas, agora elas se repetem em minha mente, atordoantes, violentas, humilhantes, e a vontade de chorar que senti naquele momento volta, intensa. Eram três rapazes de bicicleta, e sim, um deles me deu um forte tapa na bunda, ainda lateja. No momento reprimi as lágrimas.

Fui forte? Tentei ser? Não sei, apenas as segurei, até que estivesse só, em um lugar seguro, dentro de casa, no meu quarto, onde pude chorar toda a dor da humilhação de tantas vezes agredida, todos os dias, de tantas vezes que troquei de roupa com a esperança de não ser notada na rua, tantas vezes que alterei meu percurso, mudei de calçada, andei de cara fechada, deixei de dar bom dia com medo de ser interpretada de outra forma, e com apenas 19 anos. E lembrei de ter pensado como pode acontecer isso com tantas mulheres próximas? COMO PODE? Ora, aconteceu comigo e ninguém sabe! Quantas mais histórias dessas existem? Quantas com cada uma das mulheres? Penso em minha mãe, tias, amigas. Penso nessas histórias escondidas em suas mentes, latejando.

Meu pai me perguntou por que quando outro dia fui perseguida por um homem dentro da universidade, fiquei desesperada, por que não me impus, não ameacei, como tantas vezes faço em outras situações. Também não entendo o porquê. Sei é que só penso em fugir, me esconder, guiada pelo medo. Medo de que ao enfrentá-lo, ele me desse um tapa na bunda e saísse dando gargalhadas.

Imagem destacada – Alguns direitos reservados por Srta. Bia. Flickr.

3 comments
  1. Natália, eu já usei até aliança falsa (comprei uma de bijouteria folheada a ouro) e usava na mão direita (de noivado) e cada vez que era assediada falava uma história de um falso noivo diferente), só pra evitar assédio.

  2. Nossa… também já troquei de roupa, troco de calçada, já andei muito olhando pro chão, exatamente pelos mesmos motivos. No geral não gosto de ser olhada porque, normalmente, quando olham, o fazem com falta de discrição e porque me dá um certo medo. Às vezes até me pergunto se não estou paranóica, mas ainda prefiro me prevenir em qualquer situação.
    Infelizmente, esse tratamento desrespeitoso começa/acontece nas escolas. Aos meus 9 anos de idade, na 3ª série, tive dois colegas que adquiriram a mania de tocar nas meninas e lembro de ter batido e apanhado de volta também. Com o tempo eles pararam, mas não me lembro exatamente as medidas que a escola tomou (se é que tomou =/), só me lembro que eu não compreendia bem a situação ou o que eles pensavam e que me sentia constrangida. Ao menos minha professora nos deu algum apoio na época.
    O que muita “gente” finge não entender é que palavras machucam. Toques machucam e humilham, nos mostram muitas vezes indefesas. Olhares ofendem e relembram. Porque as palavras, toques e olhares nos lembram claramente como somos vistas por muitos, como quem vale no máximo como objeto sexual e não tem direito sobre sua vida.

    E… uns meses atrás, fui abordada por um homem que parece ter o dobro da minha idade, quando voltava da feira. Mesmo depois de um não (até menti que era casada), ele continuou me seguindo e isso começou a me assustar. Ele corria na frente, por outro caminho e ficava parado “me esperando” Num dado momento do trajeto, resolvi parar e esperar para “encara-lo” e me impor, morrendo de medo. E então, entre outras coisas, ele descreveu a primeira vez que tinha me visto, que percebi que já fazia muito tempo. Eu disse algo e outro não. Mas ele continuou me seguindo, indo por outros caminhos. Consegui despista-lo entrando num mercadinho, meu medo era que descobrisse onde eu morava. Depois de chegar em casa e pensar mais um pouco, percebi que era a mesma pessoa que já havia me abordado e insistido 7 anos atrás, quando eu tinha 16 anos! Fiquei com mais medo ainda. Fiquei semanas com medo e raiva por ele ter me seguido, evitando ir à feira naquele dia e horário. Com o tempo não o vi mais, mas caso me se aproxime novamente, terei de tomar alguma providência.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

You May Also Like
Leia mais

Uma bunda na foto vale mais que uma arara!

Ao ler os comentários sobre o episódio dessa chamada de brasileiras para casamentos com gringos através do site do Huck, só consigo pensar em como nós brasileiras ainda somos vistas no nosso próprio país: mercadorias com bundas do tamanho P, M e G. Não sou macaca, minha bunda não é internacional, Brasil não é cartão postal de bundas e a mulher brasileira não esta à venda!
Leia mais

Bem vindos ao Brasil colonial: a mula, a mulata e a Sheron Menezes

Sim, sabemos que 125 anos se passaram e a escravidão acabou, porém as suas práticas continuam bem vindas e são aplaudidas por muitos de nós na novela das nove e no programa do Faustão, “pouco original, mas comercial a cada ano”. No tempo da escravidão, as mulheres negras eram constantemente estupradas pelo senhor branco e carregavam o papel daquela que deveria servir sexualmente sem reclamar, nem pestanejar e ainda deveria fingir que gostava da situação, pois esse era o seu dever. Hoje nós, mulheres negras, continuamos atreladas àquela visão racista do passado que dizia que só servíamos para o sexo e nada mais.