“Filho de pobre tem que estudar para ser alguém na vida”, “seu marido é seu emprego”, “pouco ou muito, tenha o seu dinheiro certo!”. Essas foram algumas das frases que ouvi dos meus pais ao longo de minha vida, repetidamente. A mensagem era clara: estudar era a única opção para pessoas como nós.
E foi assim, contrariando qualquer estatística, para quem não tinha recursos financeiros, que Severino e Maria José constituíram a primeira geração da família de graduados e pós-graduados. Oriundos da rede pública de ensino, nenhum dos seis filhos puderam fazer uso de cotas sociais e/ou raciais, uma vez que, na época, não havia tais políticas.
Atualmente, essas políticas de reserva de vagas têm sido fundamentais para diminuir as desigualdades econômicas, sociais e educacionais do nosso país.Essas políticas são uma maneira de pôr em prática o princípio da equidade, isto é, tratar desigualmente os desiguais para possibilitar a efetiva igualdade. Nesse sentido, as políticas promovem o acesso de pessoas negras às universidades e serviço público.
Sabemos que o cenário atual é de ataques contra o serviço público. Aparentemente, não seria um bom momento para pensar nesse tipo de ocupação. Mas, resguardadas as devidas especificidades, nós também já vivenciamos esse mesmo cenário no período do FHC. E duas coisas se sobressaem: primeiro, algumas áreas não podem deixar de, pelo menos, repor pessoal, a exemplo, da saúde e segurança pública. Segundo, esse momento de “entressafra” pode representar para nós, que precisamos empenhar um esforço muito maior, mais tempo de organização e preparação para disputar as vagas.
As colocações em concursos públicos de quatro dos filhos, sendo eu um deles, também não se deu por meio de políticas públicas de inclusão da população negra, o que tornou esse percurso não apenas mais difícil, foi também mais solitário, afinal: éramos a estatística que deu errado, em todos os espaços eram poucos de nós lá (1).
Ressaltamos que, no setor público federal, segundo a agência Senado, “a Lei de Cotas surgiu para reduzir a discrepância de negros e pardos entre o serviço público federal e a população geral do país. Hoje 53% da população brasileira se declara negra. Nas repartições federais, o índice cai para menos de 35%”. Ainda segundo a mesma fonte, em carreiras “como diplomacia e auditor fiscal, a presença de negros é ainda menor — 6% e 12%, respectivamente. O objetivo das cotas raciais é corrigir esse tipo de desigualdade, para que o serviço público reflita a distribuição da população brasileira”. (2)
Portanto, pensar em seleções e concursos públicos, sobretudo, aqueles que possuem as melhores condições de remuneração e trabalho, é rememorar toda a minha trajetória de vida e profissional. De onde eu venho, não tive muito tempo para pensar sobre qual profissão escolher ou onde gostaria de trabalhar. Não havia escolha a ser feita, nem caminho traçado, só havia um imperativo: estudar!
Em 2003, ingressei no ensino superior, ao concluir a graduação em serviço social, naquela época, algumas portas se abriram. Foi no campo da educação, ao atuar no gerenciamento de projetos, que tive a necessidade de compreender assuntos ligados à gestão pública, pagamentos, impostos e afins. Fui apresentada à área fiscal e me interessei de imediato pela temática. Foi assim também que o mundo dos concursos se tornou uma realidade para mim.
Veja, eu sempre fiz concursos públicos, inspirada pelo meu irmão mais velho e carregando comigo o conselho de minha mãe “pouco ou muito, tenha o seu dinheiro certo”. Ela era funcionária pública, e sabia que mesmo com o baixíssimo salário (nível fundamental), era a estabilidade funcional que lhe garantia autonomia em relação ao meu pai, bem como o pão na mesa. Imbuída por essa percepção, eu fazia as provas.
Motivada também pela necessidade, eu passava pela banca de jornal, via o anúncio do concurso, olhava a escolaridade, e se eu me encaixasse naquele perfil, buscava formas de me inscrever, e ia fazer a prova “com a cara e a coragem”. Ledo engano! Quase sempre tropeçava nas matérias de exatas, além de não ter nenhuma experiência sobre as “pegadinhas” das bancas. Ademais, dividia os estudos com diversas atividades profissionais e acadêmicas.
Em determinado momento de minha vida, já estabilizada financeiramente, pude me decidir por priorizar os concursos. Assim, um mundo novo me foi apresentado! Uma das primeiras decisões foi me preparar numa sala de estudos (na minha casa não tinha condições: muita gente, muito barulho) e nesse local mantive contato diário com pessoas que focavam apenas nesse tipo de preparação, em geral, para certames de alto nível, tais como, magistratura, defensorias, promotorias.
Ao longo de três anos, pude perceber que esse tipo de preparação exige tempo, dinheiro, além de requerer métodos e técnicas de estudos voltados especificamente para esse tipo de prova. Percebi o quão distante é aquela realidade para a maioria de nós: ter o dia inteiro dedicado aos estudos, à preparação para uma prova, o acesso a essas metodologias, à sites com conteúdo voltados para concursos.
Existe muita coisa gratuita sobre concurso, tem muitos preparatórios que disponibilizam aulas em tempo real, mas que você só tem acesso naquele momento, após isso, é necessário pagar para visualizar o conteúdo. Também é comum encontrarmos materiais parcialmente liberados, como amostra grátis. E por fim, os sites que disponibilizam as questões das matérias também têm um custo considerável.
Por tudo isso, me percebi, naquela sala de estudos, como uma das poucas pessoas negras naquela condição. Podia se contar nos dedos os negros que tinham acesso a toda essa estrutura, a qual se tornou necessária para concorrer de modo competitivo a uma vaga num certame público. E não estou falando apenas de cargos de alto nível como mencionei, mesmo os cargos de ensino médio, exigem tempo e dinheiro, pois não é incomum encontrar pessoas de nível superior, disputando também essas vagas.
Descobrir-se uma mulher negra nesse meio é querer, necessariamente, questionar e balançar essas estruturas. Nas minhas experiências, outros negros que por ter alguma mínima condição financeira, não se sentiam à vontade para se inscrever nas vagas reservadas aos candidatos negros e confundiam os tipos de vagas raciais e sociais.
Também é ser questionada sobre sua negritude, é ouvir coisas do tipo: “você não é tão negra assim” ou ainda “você se diz negra para entrar nas cotas”, tem também aqueles que dizem “as cotas raciais é coisa de vitimista porque você mesmo está aqui igual a mim, numa sala de estudos com acesso aos mesmos materiais que eu, e, portanto, pode concorrer a uma vaga em pé de igualdade”.
Todas essas falas eu ouvi e cada vez mais me enchia de coragem para contribuir com outras mulheres negras que também desejam disputar uma vaga num certame público. Consciente das diferentes realidades, que eu também enxergava dentro da minha própria família, criei o projeto Afroconcurseira (3), voltado para colaborar sobretudo com a inserção das mulheres negras no setor público, em qualquer nível de escolaridade.
O sonho que começou há quatro anos, saiu do papel em 2021! Em um momento dificílimo para todo mundo, em particular para a população negra e pobre, o projeto Afroconcurseira surgiu como a forma que tenho de dividir não apenas materiais e metodologias, mas partilhar vivências e conhecimentos que podem ajudar nossa população a adentrar nessas estruturas do Estado, a obterem a estabilidade proporcionada pela ocupação de um cargo público.
Nesse contexto, a Afroconcurseira objetiva:
- Construirmos uma comunidade para reivindicar a permanência e ampliação das cotas raciais nos concursos públicos (pela lei o tempo de duração dessa política é até 2024).
- Somar-se às demais entidades que buscam aprofundar as políticas afirmativas, tendo também esse recorte de gênero, quanto à ocupação de cargos públicos.
- Adotar uma abordagem racializada sobre a ocupação de cargos públicos. Fortalecendo a ideia da lei de cotas como um direito, refutando os mecanismos do sistema racista que busca desestabilizar e desencorajar a ocupação dos cargos reservados.
- Debater as particularidades de gênero e raça que afligem as mulheres que buscam esse tipo de inserção profissional.
- Contribuir na reflexão sobre as estratégias de fortalecimento da lei de cotas, com vistas a reduzir fraudes e desvios.
- Socializar informações, dirimir dúvidas sobre editais e os procedimentos para inscrição em concursos públicos que dispõe de reserva de vagas.
- Compartilhar de modo organizado, sistematizado as informações sobre metodologias e técnicas de estudos. Como professora e concurseira há tanto tempo, tenho convicção que esse é um dos recursos importantes para driblar a falta de tempo.
- Produzir e disponibilizar conteúdo nas plataformas de streaming (youtube, spotify, deezer), não apenas sobre metodologias de estudo, mas conteúdos propriamente cobrados nas provas.
- Produzir e disponibilizar conteúdos gratuitos e/ou com valores muito acessíveis voltados para concursos de todos os níveis de formação.
- Compartilhar as questões de provas com comentários, analisando posicionamentos das bancas, e contextualizando as “pegadinhas”, pois estes sites, em geral, estão disponíveis apenas mediante pagamento.
Lembro-me de, inicialmente, as vagas reservadas serem sistematicamente desrespeitadas em virtude de brechas no texto da lei que se referia a autoidentificação, e os editais não previam mecanismos suficientes para assegurar que essas vagas fossem de fato preenchidas por pessoas negras.
Após algumas audiências públicas, com participação ativa de entidades voltadas às questões raciais, foram implementados mecanismos administrativos para verificar a autenticidade da autodeclaração de cor. E foi assim que os editais começaram a prever uma etapa administrativa, na qual candidatos inscritos nas vagas de cotas raciais são eliminados, caso não apresentem características fenotípicas.
Um aspecto fundamental a ser esclarecido é que, no caso de concursos públicos, são organizadas duas listas de aprovação, uma geral e a outra para candidatos que se autodeclararem negros. Contudo, haverá apenas uma lista de nomeação para aquele órgão, e o edital já disponibiliza as vagas que serão reservadas às cotas raciais. Por exemplo, eu fui aprovada em 5º lugar na lista de negros (e na 100ª posição na lista geral) em determinado concurso. No edital, a 23ª vaga na lista de nomeação corresponde ao quinto colocado na lista de negros. Percebe quantas posições avancei na lista de nomeação?
Participei de três momentos de verificação. Fui aprovada, obviamente, em todos eles. Estou aguardando nomeação em dois concursos públicos. E fui extremamente beneficiada, nesses concursos, pela lei de cotas. Quero multiplicar isso! Vamos juntas!
Notas
(1) Lembramos que a lei de reserva de cotas em concursos públicos federais foi sancionada pelo governo Dilma em 2014. Há registros anteriores a essa lei federal, que alguns estados do país já disponibilizavam essas vagas específicas nos certames para preenchimento de seu quadro funcional. A lei 12.990/2014 permitiu essa reserva no âmbito público federal, e por simetria incentivou que estados também aprovassem legislação de igual teor. Pernambuco, por exemplo, em seus concursos estaduais não dispõe desse tipo de vagas. No meu estado, apenas vagas do judiciário dispõem de cotas, porque nesse âmbito, a determinação foi do Conselho Nacional de Justiça, devendo ser obedecida em todo o território nacional.
(2) https://www12.senado.leg.br/noticias/especiais/especial-cidadania/lei-de-cotas-em-concurso-e-julgada-constitucional-mas-ainda-motiva-acoes/lei-de-cotas-em-concurso-e-julgada-constitucional-mas-ainda-motiva-acoes. Acesso em 10/05/2021.
(3) Site: www.afroconcurseira.com.br e Redes sociais: @afroconcurseira. [Instagram/ facebook/ twitter/ spotify/ Deezer].