Você acha que eu não queria ser branco?

Sobre episódios que acontecem nos ônibus…

Nesta semana enquanto voltava para casa, em pleno horário de pico na capital baiana, comecei a escutar um burburinho no ônibus lotado. Entre os rostos que demostravam cansaço e até estresse, avistei que quem falava era um rapaz alto, magro, negro, que aparentava ter seus 30 anos. Ele gritava para o motorista: “Eu não sou ladrão, não. Se fosse um branquinho todo engomado não deixaria de abrir a porta. Sou trabalhador, entrei por aqui porque me enganei”.

É que anteriormente os passageiros entravam pela porta traseira e saiam pela frente. Mas, recentemente, o sistema de ônibus de Salvador se igualou ao de outras capitais e é preciso fazer o inverso. Os baianos ainda não se acostumaram com isso. Não entendi muito bem o que realmente aconteceu, mas comecei a prestar mais atenção no que ele dizia.

Ainda exaltado o rapaz continuou: “Isso é castigo por causa da cor. Você acha que eu não queria ser branco? Queria, sim, pelo menos não passava por isso”. Parei por alguns minutos. Imaginei o que passava pela cabeça dele, como teria sido a sua vida até então, o que já teria sofrido para ter que falar algo tão forte. Na minha cabeça, apenas ecoava o seu questionamento. Pensei quantas negras e quantos negros não tinham a mesma vontade daquele rapaz.

Imaginei porque o desejo de ser branco falava mais alto naquele momento, quando, finalmente, em meio as minhas reflexões, conclui que a culpa por esse tipo de pensamento ainda existir e estar impregnado em cada um de nós não é daquele rapaz. Mas, sim, da sociedade que insiste em querer mostrar que quanto mais branco, melhor. Que ainda hoje é preciso que passemos pelo processo de embranquecimento social, biológico e estético, para sermos aceitos.

O primeiro passo para desconstruir essa ideologia é entender que o padrão europeu não deve ser o único aceito e sua imposição no mundo já vem sendo desmontada a cada mulher negra emponderada que anda pelas ruas, a cada criança que recusa que seus cabelos sejam alisados, a cada homem, negro, que também se aceita! É preciso que continuemos a passar por cima das barreiras racistas com orgulho de forma a influenciar nossos irmãos.

Descobrir-se negro pode ser um processo lento para muitos. Construir a própria identidade, desconstruindo o racismo que ainda persiste em nossa sociedade pode demorar ainda mais. A questão da representatividade tem que ser discutida em todo e qualquer lugar. É preciso ser mais forte que todas essas barreiras. Resistência e luta fazem parte da nossa história!

Queria ter conversado com ele, ter dito que não há necessidade em querer ser branco, pois é seu direito ser respeitado. Queria ter dito sobre enegrecimento, aceitação, Mandela, Zumbi, Luiz Gama, orgulho negro e da coragem que não tive para contá-lo quando simplesmente o vi deixar o ônibus.

É de extrema importância que continuemos a discutir sobre a autovalorização negra, sobre as figuras que fizeram a diferença em nossa história e são, até hoje, pouco faladas inclusive no âmbito da educação. As marcas deixadas desde o processo de colonização no Brasil é perceptível que ainda não sararam. 

O racismo age diretamente no psicológico do atingido, adoece, entristece, provoca. Não deixaremos mais que rótulos racistas e estereótipos preconceituosos, como o que certamente passou pela cabeça do motorista, repercutam em atitudes como esta.

Racistas, definitivamente, não passarão!

Imagem destacada: Blog Afrokut

16 comments
  1. Muito bom, enquanto o negro não se aceitar esse tipo de pensamento vai ficar rodando sua mente.
    Adorei, quero ver mais textos seus.
    Parabéns..

  2. Genteeee…. chega meu coração deu tremiliques quando li “você não acha que eu queria ser branco?”

    Como dói tudo isso, gente?! Como dói essa perversidade da branquitude que nos espezinha TODOS OS DIAS. Branco nenhum acorda tendo que pensar que é branco, mas nós todos os dias temos que pensar: sou negra/o, o que vai me acontecer hoje???

    Dói demais, todo dia!!!

  3. Que cada vez mais possamos acabar com o racismo e com os rótulos que a sociedade impõe! Ótimo relato, jornalista maravilhosaaa!!!! #orgulhodafamilia

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Diametralmente oposto a esse padrão aceitável se encontra, por lógica, o corpo negro. O corpo negro, seus traços, sua genética, seu fenótipo e a infantil tentativa de negar a construção social que tem o gosto. Somos, todos nós – negrxs e brancxs – expostos desde crianças a propagandas, programas infantis, desenhos, revistinhas em que predomina um padrão de beleza europeu. “Gosto não se discute” porque a mídia já deliberou sobre ele por nós, apresentou-o e nós, como o esperado, compramos não só o gosto mas também o slogan. Continuemos sorrindo!