Texto originalmente publicado no blog Transfeminismo.
Na única vez em que tive um namorado, o indivíduo ouviu de familiares que “trouxe um traveco” para dentro de casa. O que resultou, posteriormente, em sua expulsão. Desde lá, após ter sentido o impacto que minha construção identitária pode ter, negativamente, até mesmo na vida dos outros, eu tenho vindo a refletir sobre as questões afetivas que rondam não só a minha vida, mas também a de minhas irmãs mulheres trans e travestis, afinal, sei que o olhar coisificador que recaí sobre mim, é o mesmo que recaí por todas elas. Em mesas de bares em Brasília, no grupo do What’s App ironicamente chamado de “Socializadas”, no “Hormônios para Transgêneros” onde conversamos sobre terapia hormonal e em outros espaços onde tive e/ou tenho o prazer de conversar com outras mulheres que compartilham comigo da mesma condição de vida, é de praxe chegarmos ao tópico que parece ser unanime na vida de todas: o limbo afetivo.
O questionamento do título vem de minhas reflexões, enquanto mulher que se relacionou, majoritariamente, com homens e que veio a se flagrar pensando as formas que meus desdobramentos amorosos se davam – ou nunca deram -. Por que os homens, sejam cis ou trans, não estão amando mulheres trans e travestis? Por que homens cis, por mais “libertários” que sejam seus discursos, ainda assim, não conseguem ver mulheres trans como alguém que ele pode ter um relacionamento sério ou ser visto, em público, com ela? Por que quando observamos homens trans que namoram, quase todos, estão com mulheres cis? Que tipo de estrutura é essa, que legitima uma grande parte de mulheres nunca terem tido o contato com o tão famigerado amor? E a quem interessa que estejamos sozinhas?
“Muitas mulheres negras sentem que em suas vidas existe pouco ou nenhum amor.”
Enquanto fazia leitura de feminismo negro, me deparei com esse trecho de “Vivendo de amor” da Bell Hooks. Enquanto mulher trans e negra, interseccionar essa afirmação, trazendo-a para meu contexto, é de extrema importância. Não só enquanto mulher negra dos traços fortes e do cabelo cacheado, mas também enquanto mulher trans, a que possui um corpo abjeto, sinto como em minha vida tivesse existido pouco ou nenhum amor. Uma vez que ocupamos, dentro da sociedade, um papel que lida, diariamente, com penalizações, o lugar de pessoa “rejeitada” já está internalizado. Porém, a sensação é sentida na realidade, quando em contato com os outros. Principalmente, quando se tratam de questões afetivas. Afinal, qual homem me beijará? Qual homem andará junto comigo em um Shopping? Qual homem me apresentará para sua família enquanto companheira?
Essa semana, Felipe Neto, lançou um vídeo em seu canal onde cita situações “que preferia esquecer”. Uma dessas situações, era quando um amigo, também homem cis, beija uma mulher trans na balada. Romário, que foi recentemente tão elogiado pela esquerda brasileira por ter desmentido a Veja, há pouco tempo disse publicamente que “gosta de mulher” quando questionado se havia se relacionado com uma mulher trans. Dois homens públicos, dois homens públicos que associam, em frente aos holofotes, que sair e/ou se relacionar com mulheres trans e travestis é algo vergonhoso, que deturpa a suposta heterossexualidade masculina. E isso surge a partir da falta de compreensão sobre o que é identidade de gênero e o que é orientação sexual. Mulheres trans são mulheres. Travestis fazem parte, também, de uma construção identitária feminina. O reconhecimento/leitura social que ambas as partes possuem, são de identidades que performam, diariamente, signos femininos. Portanto, uma pessoa que se sente atraída por mulheres, poderá ter essa atração por nós, afinal a orientação se dá a partir do reconhecimento do gênero do outro e não pela identificação da genitália. Porém, tendo consciência de toda uma cultura transfóbica sendo pavimentada todos os dias no contexto brasileiro, vir a publicamente assumir um relacionamento com uma de nós, irá condicionar aquele parceiro, a enxergar uma transfobia contida em nossa sociabilidade, que antes ele não se dava conta. E que, inclusive, vem a respingar nele quando ridicularizado por “estar com um traveco” (sic). Para a pessoa que ontem portava privilégios de ser quem apontava o dedo, hoje passar para quem pode receber os dedos apontados, é um jogo de relação de poder que, para a maioria dos homens, não está disponível de se abrir mão.
Ronaldo Fenômeno, vangloriado por seu talento em campo, foi e ainda é ridicularizado publicamente por ter sido pego saindo com travestis. Pegando a entrevista cedida ao Fantástico, destaquemos uns pontos:
- “Eu fiz uma grande besteira na minha vida pessoal (…) Eu sou heterossexual (…) Foi um ato isolado, completamente estúpido e que estou, completamente, arrependido e envergonhado.”
O tom de vergonha e arrependimento colocado em entrevista exemplifica o resultado do que é ser visto, em público, conosco. A visão do sexo do civilizado com o degenerado, entendimento que, inclusive, já foi teorizado cientificamente, se estende até os dias atuais. Atribuindo a certas castas a posição de degeneração e criando uma censura que, ao ser exposta, faz com o civilizado seja questionado, ridicularizado e passando por um processo, também, de desumanização social.
Porém, a quem interessa que eu, enquanto mulher trans, esteja sozinha porque não iria me sujeitar a um relacionamento escondido? Uma vez que eu recuso esse parceiro de esconder nosso envolvimento, qual forma irá parecer mais viável para ele se relacionar com uma de nós? E quando ele procurar essa outra garota, aquela que não pode fazer cobranças que um relacionamento requer, que estrutura ele está fazendo a manutenção, nesse caso, literalmente monetariamente, por aquela possibilidade de se envolver com uma de nós, mas tendo um limite, de ambas as partes, já pré estabelecido?
O entendimento do sexo conosco ser proibido, por sermos criaturas “degeneradas”, cria, para alguns, um fetiche. A hiperssexualização de nosso corpo, como possibilidade de um ato sexual e/ou envolvimento que cria, naquele indivíduo, a sensação de estar matando “uma curiosidade”, de conhecer um novo entendido como “exótico”:
- “Vc é mulher? Nossa, nem parece! Coxão, corpão, bocona… não fosse o bilau ninguém diria. E como é que é faz pra transar com traveco? Vc faz tudo? Nunca saí com homem, mas deu vontadinha agora. Vc come? Pintão? Ah os hormônios… mas um travecão gostoso que nem vc não comer é foda, ein. Se bem que nem sei se aguento, nunca fiz, mas deu uma vontade de saber como é.” ¹
Atrelado a visão de sermos seres “exóticos”, vem o não reconhecimento de nossa identidade enquanto mulheres, como já citado anteriormente, nos colocando como uma sub categoria para desejos “estranhos” que aparecem durante o tedioso dia a dia:
- “Nossa, vc é bonita, gostei… eu até namorava se vc fosse mulher. Toda bonita assim, branquinha, boca rosada, humilde, mas não dá, entende? A transa gostosa marido e mulher, o dia a dia, a cumplicidade, tudo isso ia fazer falta. Não é preconceito, é que eu gosto só de mulher. Sou louco por uma buça. Vc é praquela variada de vez em quando, quando cansa. Sou casado, amo minha mulher.” ²
O processo de desumanização diário que somos, infelizmente, expostas refletem não só nos índices de evasão escolar e de não estarmos no mercado de trabalho, mas também em questões afetivas. Na nossa interação com o outro. Com a nossa expectativa afetiva em relação ao outro. O que eu, enquanto mulher trans, posso esperar de você, homem? O que você tem para me dar? Você, mulher cis, seu irmão, seu primo, seus amigos, seus conhecidos ou até mesmo, seu atual namorado, quantos deles assumiram mulheres trans? Quantos deles veem mulheres trans como mulheres? Quando eles, enfim, poderão nos amar? Afinal, por que os homens não estão amando mulheres trans?
BIBLIOGRAFIA:
HOOKS, Bell. Vivendo de Amor.
[1] [2] MOIRA, Amara. Monólogos do Lixo, disponível em: http://www.eseeufosseputa.com.br/…/04/monologos-do-lixo.html
11 comments
Parabéns pelo texto! Ele trouxe várias questões pontuais e emblemáticas. Admiro muito sua militância e a maneira como escreve.
E obrigada por educar pessoas como eu, que por serem hetero e consideradas normais pela sociedade muitas vezes são incapazes de se colocar no lugar do outro.
Sou lésbica cis, achei que deveria me identificar… Só queria dizer que adorei você e seu texto. Adorei o jeito como você fala (vi seu vídeo no Canal das Bee e você é linda!) e escreve. Achei o vídeo e o texto muito informativos. Parabéns pelo seu trabalho.
eu lembro sobre essa “polêmica” com o Ronaldo, mas era eu pequeno e não tinha consciência nenhuma sobre o tema.
é tão triste rever essa entrevista agora e ver o quanto ele está “arrependido e envergonhado”.
é extremamente miserável a população se interessar e dar ibope pra ele.
e por outro lado, ótimo texto!
Homem trans gay aqui. Sinto o mesmo porque sei que muito homem gay vai ter nojinho de vagina, e não me sinto à vontade pra fazer a cirurgia na genitália por ser complicado demais. Já me conformei com o fato de que ficarei sozinho pra sempre *risos*
Texto maravilhoso e hiper realista! Infelizmente, essa situação humilhante, nos é condicionada desde sempre. É preciso que quebremos paradigmas, desconstruamos tabus e preconceitos, mas como fazer isso em um país onde as instituições se negam a adotar um ensino inclusivo? É preciso que ocupemos mais espaços de poder, tanto no legislativo quanto no executivo, para assim podermos dar voz às nossas irmãs que tanto sofrem com esse terrível estigma.
Não conseguiremos erradicar 100% do preconceito, das cabeças de pessoas que já estão condicionadas a pensar dessa forma tão desumana e excludente, mas poderemos ajudar as próximas gerações e compreenderem as diversidades dos espectros da natureza humana. Crianças que crescerão e se tornarão adultos que saibam respeitar as trans, que sejam melhor informados no que tange à orientação sexual e identidade de gênero, que sejam desprovidos de preconceitos. Precisamos lutar para mudar essa realidade e mostrar para a sociedade que somos mulheres legítimas. Ter um pênis ou uma vagina não define quem realmente somos.
Eu tenho um marido que graças a Deus, me respeita e me assume orgulhosamente onde quer que formos, mas nem todas têm a mesma sorte. Até recentemente, eu vivia uma relação poliamor, mas mandei o outro vazar, justamente por ele não ter a maturidade necessária. Ele nunca me levou para conhecer sua família e parentes, mas vivia dizendo que não gostava de racha e sim de trans. Ele preferiu me trair com minha amiga lésbica. Inclusive até a apresentou à família como sua namorada e suposta noiva. Foi um duro golpe, mas ainda tenho 1 marido, este sim, verdadeiro, que está junto comigo há 11 anos. Ainda gosto do poliamor, mas sei que o amor verdadeiro eu já encontrei há mito tempo e é com este que passarei o resto de meus dias. Desejo o mesmo para minha irmãs que sonham em ter um relacionamento real. Todas merecemos ser felizes. Não que devamos apoiar nossa felicidade nos homens. Nós nos bastamos, mas ter alguém com quem compartilhar sua vida, seus momentos bons e ruins, um relacionamento onde exista cumplicidade e respeito mútuo, é de direito de todxs.
Sabe que às vezes eu penso que à avidez pelo “amor” faz um ser humano perder a noção de sua dignidade. É as mulheres são ávidas de mais pelo amor masculino, fazem do amor de um homem a tábua de salvação. Não bastasse as mulheres biológicas, agora também as trans. Meus amores, eu sei todo mundo quer ser amado, mas por favor esqueça essa história de amor. A ideologia de gênero não te fará encontrar o homem cia Príncipe que casará e será feliz para sempre com sua princesa transgenero. Porquê príncipes não existe, e como é triste ver essa carência e ingenuidade entre as trans. Minha filha, não há nada de novo debaixo do Sol. Homens vão ter curiosidade com qualquer mulher com ou sem vacina, desde que seja diferente da mulher que ele têm. Mulheres cis São assumidas mas quem disso que isso as torna felizes e realizadas no amor? Olhem as estatísticas, tive uma amiga que casou de véu e grinalda, e era infeliz a coitada, apanhava, era traída, era estuprada pelo próprio marido. Separou se é ficou traumatizada. Ficou sem sexo um tempão. Até que achou um homem bom. É deu logo pra ele pq ele já havia esperado por ela a cinco meses, e lá foi ela transar para garantir que se receba amor de um homem. O problema de muitas mulheres é fazer do sexo como moeda de troca para mendigar amor de um homem. Então se recentem e dizem ” vc só quer sexo comigo” só faltou dizer poxa vida eu faço sexo com vc”me ame por favor” Isso é um atentado contra a dignidade feminina. Amiga erga a cabeça, não espere que nós mulheres cis façamos a cabeça de nossos filhos a assumilas. Nem nós somos felizes no amor, vcs acham que vcs vão ser? Não, pode até ser que algumas sejam. Não há muita opção a não ser estas :a primeira e já está descartada é a aceitação. A segunda é a castidade, sublime todo seu desejo sexual e use a sua sexualidade somente com quem valha a pena (Isso é um atestado de solteirisse perpétua mas vale a pena, melhor que mendigar amor masculino e ficar se lamentando por não ser amada) E a terceira opção é o ser adepta do poliamor, ou do fica aqui e fica ali. Mas amor, amor romântico, amor de novela. Ah minha filha não mesmo! Keep calam e tenha o senso de realidade. Não vale a pena!
Que close errado… quando não se tem nada e bom pra falar, é melhor nem falar nada!
Nós mulheres trans não temos que aceitar porra nenhuma, se manca!
Adorei o texto me lembrou um que escrevi em tom de desabafo no dia em que um homem que descobriu minha transexualidade desistiu de mim …
http://www.recantodasletras.com.br/cronicas/5075759
O Problema todo deve ser pq os caras hetero só se atraem por mulheres que possuem vagina, utero, ovários, predominancia dos hormonios estrogênio e estrutura esquelética feminina.
Esses caras caretas são sempre assim, não conseguem ignorar a própria biologia rsrs…
Maria Clara, vc escreve um texto mto bem. Além de tudo isso, a problemática que apresenta é algo que a sociedade precisa debater e que as famílias e crianças possam ter o conhecimento mínimo das identidades de gênero para compreender que o mundo vai muito além do certo e errado, do homem e da mulher, do sagrado e do profano. A Escola seria um local ideal para isso, mas reconheço que estas instituições não possuem abertura, ainda, para tais questionamentos e debates.
Quem os homens conseguem amar além de si mesmos?