Beyoncé já havia feito história ao ser convidada para o festival Coachella, uma vez que foi a primeira mulher negra a ser a atração principal do evento. Ela poderia ter chegado, sentado em um banquinho e cantado à capela por 1h50min e já encantaria seus fãs pelo mundo todo, mas isso não seria o bastante para alguém que assumiu o compromisso de dar seguimento à luta de nossas/os ancestrais. Por isso, ela resolveu transformar o show em uma aula sobre a infinita capacidade do povo negro de (re)existir e se (re)criar e, para que não houvesse dúvidas sobre seus objetivos, ainda fez um documentário realmente histórico.
No espetáculo foi encenado um encontro de ex-alunos de uma universidade negra, algo que pode parecer estranho para nós, brasileiros, que acreditamos nunca ter vivenciado um regime de segregação racial, por isso até nos revoltamos com a possibilidade de existir uma universidade negra. Curioso é que não nos incomodamos com o número quase residual de estudantes negros e negras em nossas universidades, supostamente, públicas e abertas para quem quiser e conseguir, como manda nossa boa e velha meritocracia. Enfim…
Nos EUA os negros conquistaram espaços com os quais, aqui, só começamos a sonhar há poucas décadas, mesmo assim, no documentário podemos ver que muitos dos negros e negras que compõem a equipe de palco nunca pisaram em uma universidade, negra ou branca. Tal situação torna a proposta do espetáculo dolorosa e inspiradora!
Dolorosa porque, em sua maioria, assim como seus irmãos e irmãs negros e negras, os artistas da equipe nunca puderam contribuir para os grandes avanços e debates construídos nos templos do saber ocidental, tampouco usufruir dos conhecimentos e vivências proporcionadas por essa formação. Situação que contribuiu e contribui para a consolidação da ideia de inferioridade negra e intensificação dos efeitos traumáticos e dolorosos da exposição constante a situações de racismo.
Inspiradora, pois o evento não se trata de um lamento triste sobre as terríveis consequências do racismo para nossa formação, ao contrário, tratou de mostrar o fracasso desse sistema em nos tirar o legado ancestral que corre em nossas veias, move nossos corpos, corações e mentes ou, como nos ensina a filosofia nagô, nossos arás, okans e oris.
Tudo começa pela escolha do cenário; ao colocar no centro do palco uma pirâmide, símbolo maior da grandiosidade da cultura africana, entrar triunfante, vestida como uma rainha egípcia e depois como uma universitária, com uniforme do time e todas aquelas referências tão caras às jovens americanas, proporciona um verdadeiro passeio transatlântico. Mais que um show memorável, cria uma alegoria da diáspora negra e um grito bem no meio da cara dos racistas: “vocês tentaram roubar nosso legado histórico, cultural, científico e filosófico, mas pegamos de volta! Vocês tentaram nos privar dos espaços que construímos no cárcere por meio do nosso trabalho, sangue, suor e lágrimas, mas estamos aqui, dominando também seus espaços de formação para libertar nosso povo!”
“Homecoming” nos coloca diante das lutas de um povo, mas principalmente consolida o lugar de Beyoncé como liderança fundamental na luta da mulher negra. Há quem diga que ela criou um novo conceito para a música pop, porém isso, além de não ser novidade, também não é nada comparado aos avanços e contribuições para pensar o próprio movimento de mulheres negras.
Sei que ela mesma se orgulha em se afirmar feminista, mas creio que esse termo ainda diz pouco sobre sua proposta. Não quero criticar a luta e a história feminista, sei bem o quanto devemos a elas, mas o tipo de resistência preta feminina proposta pela artista vai muito além disso, pois remonta às origens de nossa formação social, intelectual e até mesmo, na falta de um termo melhor, espiritual.
O primeiro ponto e talvez o mais marcante é o lugar ocupado pelo homem negro. Ao enaltecer o povo negro e nos pensar como uma unidade, colocando homens e mulheres negros e negras do mesmo lado, juntos, completando-se uns aos outros, devolve também a nossos irmãos seu lugar na realeza africana, seu poder e sua força. Porém, não há perdão para o machismo, não há espaço para aqueles que ainda insistem em abraçar a violência e o sonho de dominação e subalternização das mulheres proposto pelo patriarcado. Não há espaço no quilombo para aqueles (ou aquelas) que ainda amam seus grilhões!
Podemos notar essa postura e o resultado positivo dela não apenas nas letras, enfáticas na denúncia de e combate a atitudes destrutivas de homens contra suas companheiras, mas também nas performances e nos relatos dos homens da equipe, reconhecendo a importância do trabalho em parceria com suas irmãs e a importância de fazer parte de uma sororidade.
Outro ponto é a discussão sobre o corpo e a maternidade, deslocada da busca pelo padrão estético racista e castrador e das amarras e limitações da ideia machista do que significa ser mãe no patriarcado. Uma análise feminista superficial e pouco familiarizada com as questões das mulheres negras poderia avaliar os esforços relacionados ao corpo, apresentados no filme, como fúteis e até prejudiciais para a emancipação feminina. No entanto, o que vi foi Beyoncé devolver o caráter sagrado do corpo negro.
Evidente que objetificar corpos humanos é algo repulsivo e devastador, independente da cor da pele que o cubra, mas torna-se ainda mais cruel no caso de pessoas negras, pois nas raízes de nossa cultura, naquilo de mais ancestral e inescapável da história do povo africano, nossos corpos são sagrados, são templos que guardam a essência de tudo que nos torna especiais.
Carne e sangue não são apenas partes de um casulo descartável, que serve unicamente para perpetuação da espécie, deleite sexual e invólucro para uma suposta alma, a qual é a única coisa sagrada num ser humano considerado imperfeito e pecador.
Não, nossos saberes ancestrais sacralizam toda a criação, nossa filosofia nos oferece uma análise de nossos corpos e de nossa função no mundo muito mais complexa e cheia de responsabilidade. A luta empreendida por Beyoncé para recuperar a forma física não tinha a ver apenas com caber em uma roupa ou se enquadrar em um padrão estético, era a luta por extrair o máximo potencial do templo sagrado de nossa ancestralidade.
Tal atitude é fundamental, dentre outras coisas, pois a luta empreendida por ela tem seu corpo como principal arma, assim como tantos grandes nomes da luta negra libertaram inúmeras irmãs e irmãos por meio da arte, da dança, da música e de seu próprio sangue. Nossos corpos falam, gritam aos quatro cantos a denúncia das inúmeras tentativas de brutalizá-los e grita ainda mais alto quando exaltamos sua beleza, quando mostramos e nos orgulhamos das curvas por tanto tempo rejeitadas e até odiadas por nós mesmas/os. Gritou no palco com corpos negros de todas as formas e todos os tons.
Enaltecer nossa beleza não é sucumbir à objetificação machista, tampouco nos colocarmos a serviço dos desejos e desmandos dos homens, ao contrário, é tirar deles o direito de decidir sobre o que é belo e louvável, é afirmarmos que o belo é tudo aquilo que é sagrado e tudo que está sobre a terra o é indiscutivelmente.
A maternidade também surge como outra potência da mulher negra. As dores, angústias e até, em alguma medida, frustrações desse processo tão importante surgem assume o lugar daquilo que realmente são: parte da formação para a luta, um processo que, ao final, proporcionará uma dádiva exclusivamente feminina, uma força física e de caráter que nenhum homem sequer poderá sonhar em ter. É o fim do mito da fragilidade da mulher e da mãe, é devolver à maternidade seu status de milagre da vida, não apenas do bebê, mas principalmente da mulher.
“Homecoming” é mais um capítulo glorioso na nossa história e mais um passo para a destruição definitiva do racismo no mundo. Além de ser divertido e eletrizante, como deve ser a nossa luta, uma batalha pelo amor, a alegria e a beleza e a liberdade.
Obrigada Bey!!!