Atualmente observa-se um movimento literário crescente nas periferias da cidade de São Paulo. Diversos espaços como fábricas de cultura, bares, Sesc, casas de cultura, entre outros, são ocupados para a realização de saraus, encontros poéticos para contemplar a arte produzida na e para a periferia. Arte produzida por moradores da periferia que falam sobre sua realidade e ocupam seu lugar de fala, que geralmente lhes é negado em outros espaços, escrevendo sobre suas dores, seus amores, seu cotidiano, sobre a beleza, a doçura e as agruras da periferia.
Essa literatura chamada periférica tem sido amplamente estudada em meios acadêmicos e tem ocupado cada vez mais espaços não periféricos, porém muitas vezes o resultado desses estudos não chega à periferia, permanecendo na academia. Sérgio Vaz, poeta da Cooperifa, diz que literatura periférica é aquela que é produzida por pessoas que moram na periferia, que nasce em espaços violentos, do racismo, da precariedade da saúde e da educação, da orfandade, de uma condição social desprivilegiada.
Embora essa literatura esteja tendo uma projeção importante no cenário literário, é necessário destacar que os homens estão ocupando o papel principal, enquanto muitas mulheres estão lutando por reconhecimento e para ocupar seu espaço dentro desse movimento. A grande maioria dos saraus ainda é organizada por homens e muitas publicações, especialmente as mais reconhecidas, são de autoria masculina.
Apesar da dificuldade de encontrar o devido reconhecimento, muitas autoras de literatura periférica têm persistido e rompido com os padrões impostos pelo machismo e racismo. Há muitas autoras de literatura periférica produzindo ativamente obras de qualidade, seja individualmente, seja por meio de coletivos de mulheres. Dentre elas podemos destacar a autora Jenyffer Nascimento.
Jenyffer é uma mulher negra nordestina, mãe, trabalhadora, feminista, produtora e apreciadora de arte, além de frequentadora de saraus da periferia da zona sul de São Paulo. Jenyffer é porta-voz de uma geração de mulheres negras que estão descobrindo e construindo sua identidade enquanto mulheres negras, fortalecendo-se mutuamente e construindo diálogos visando ao fortalecimento de sua autoestima.
A poeta foi convidada a lançar seu primeiro trabalho autoral pelo Coletivo Mjiba, coletivo de mulheres negras fundado por Elizandra Souza, que também é escritora e tem publicadas as obras Punga, em parceria com o poeta Akins Kintê, e Águas da Cabaça, de autoria própria. O coletivo tem como foco principal o empoderamento de mulheres negras, seja por meio da divulgação e publicação de suas obras, seja por meio da realização de eventos culturais como peças de teatro e saraus.
A primeira publicação de Jenyffer foi feita em uma coletânea do Sarau do Binho, sarau realizado na região do Campo Limpo. Após essa publicação, alguns de seus poemas foram publicados no livro Pretextos de mulheres negras, obra de poemas que contou com a participação de 22 mulheres negras. Seu primeiro trabalho autoral foi a obra poética Terra Fértil. Sua obra é intensa e aborda de forma comovente e envolvente temas como amor, identidade, negritude, machismo e racismo, entre outros.
Seguem alguns poemas da autora para contemplação.
ANTÍTESE
Pediram um corpo escultural
Eu não tinha.
Quiseram uma mulher ignorante
eu já tinha lido o suficiente pra me proteger.
Sugeriram que não opinasse em assuntos de homem
Eu nunca consenti em calar.
Disseram que eu fosse esposa
Eu não quis casar.
Discursaram que as mulheres são frágeis
Eu não tive tempo de exercitar fragilidades.
Orientaram que não freqüentasse bares
Eu não pude negar as esquinas.
Quiseram controlar meu jeito de vestir e falar
Eu não vi sentido em deixar de seguir minhas vontades.
Apostaram que eu teria um subemprego
Eu vislumbrei ir mais distante.
Transaram comigo e depois fingiram não me conhecer
Eu aprendi a ignorar os imbecis.
Disseram que eu não amamentasse para o peito não cair
Eu amamentei até cair.
Submeteram meu corpo e meu psicológico à violência
Eu me juntei a outras como eu para superar.
Compraram vaidades para que eu me adequasse
Eu envaideci aprendendo palavras de ordem na luta.
Exigiram fidelidade e submissão
Eu rompi por amor próprio.
Cagaram mil e uma regras de conduta
Eu mandei pra puta que pariu
E sorri, feliz.
DESENSINAMENTOS
Estão a moldar nossos pensamentos,
A roubar nossa autoestima.
Nos ensinaram um andar cabisbaixo.
Corpos curvados encaram o chão
Como se olhar o céu ou o front
Não fosse algo permitido para negras
Lavadeiras, cozinheiras, professoras,
Balconistas, cabeleireiras e universitárias
Como nós.
Nos ensinaram que somos feias.
As capas de revistas não nos querem.
Os garotos nas escolas não nos querem.
Os cargos executivos não nos querem.
Os maridos não nos querem.
Reparem bem no que dizem.
Está tudo assim desproporcional,
Grande demais ou escuro demais.
Pelo menos ajeitem esses cabelos.
Ensinaram a moldar nossos corpos,
A tirar nossa expressividade.
Nos ensinaram coreografias pré-moldadas,
Em que o balanço e a espontaneidade não cabem,
E assim, pouco a pouco deixamos de dançar.
Somos corpos reprimidos que pairam
Por medo de errar a coreografia,
De errar a medida, de errar…
Corpos doentes.
Corpos endurecidos.
Corpos infelizes.
Estão a moldar nossos sentimentos,
A negligenciar nosso sentir.
Nos ensinaram a ser fortes.
Aguentar o sol forte queimando na cara
Ao carregar a lata d´água na cabeça,
A aceitar humilhação da patroa,
A parir sem gritar ou gemer,
A criar os filhos sozinhas.
A esconder o choro de solidão,
A não pedir ajuda a ninguém,
A esquecer de si mesma.
Nos ensinaram a calar.
A não dizer o que sentimos, nem o que pensamos.
As coisas são como são e ponto. Tá entendido?!
Na prática ninguém costuma mesmo
Dar ouvidos a uma mulher, a uma negra.
Que diferença faz o que você disser?
Quantas vezes adiantou falar?
Eles sempre dirão
“Você só fica bonitinha assim, calada”
Aprender a calar antes que te calem.
(…)
Então um dia
Outras mulheres negras
Das mesmas fileiras que nós
Nos ensinaram que tudo que tínhamos aprendido
Era uma grande farsa.
Foi quando aprendemos a lutar.