Considerando que vivemos em um mundo em que negrxs são constantemente colocadxs “no seu lugar”, submetidxs a mercado de trabalho racista, mídia racista, padrão de beleza eurocêntrico, e tudo o mais, a autoestima de negrxs incomoda. É como se fosse uma ousadia, esse passar por cima do que lhe é imposto, passar por cima de tudo que tenta colocá-lx em seu lugar. Já escutei e muitos devem ter escutado pelo menos uma vez na vida a expressão “Que pretx metidx!” por parte de pessoas ao se referirem a negrxs que transparecem segurança e autoestima, em relação a própria aparência e/ou ao que faz e a posição na qual está, e sem se deixar intimidar. O que acontece muito comumente é, não essa expressão ser claramente proferida, mas que o conceito por trás dela fique implícito na fala, incômodo, e reação das pessoas.
Em consequência disso, a situação específica da mulher negra e sua autoestima é muito complexa. Como mulheres negras, constantemente somos ditas pela sociedade pra nos sentirmos coagidas e inferiores. Nossos cabelos são “ruins”, somos feias, escuras demais, nariz largo demais, jamais ocuparemos uma posição da qual possamos nos orgulhar, não somos capazes de muita coisa. A ordem é que nós saibamos o que somos, para que servimos, qual é nossa posição no mercado e no mundo, e que estejamos o tempo todo tentando nos adaptar ao que é beleza de verdade. Nós mulheres negras temos toda uma vida de experiências pessoais que dizem respeito a constantes tentativas violentas de sabotagem de nossa auto-estima, vindas de todos os âmbitos e parte imagináveis.
Sendo assim, meninas e mulheres negras com auto-estima são uma afronta para o mundo. É simplesmente errado, como todas as nossas tentativas de te diminuir e negar sua beleza, importância, capacidade e talento para o mundo não funcionaram?
Considero que a atriz e cantora Preta Gil pode ser usada como um dos exemplos (que não faltam), de que mulheres negras com autoestima despertam ódio. Frequentemente chacota de humoristas imbecis e sem talento, ela virou seu alvo favorito. Virou a referência de mulher “feia”. Pois sendo preta e gorda, com muita segurança, que fala o que quer, e sem vergonha nenhuma de ter muita autoestima e deixar isso bem claro, incomoda muita gente. O senso-comum criado e reforçado sobre ela é que é um disparate ela se achar bonita e gostosa, não se deixar intimidar, ser livre, rir alto, fazer muito sexo e se sentir à vontade consigo mesma e com o próprio corpo. Todas as piadas, a chacota, a obsessão dos humoristas e do público em relação a ela contém um implícito “Como você ousa? ‘Se enxergue’, coloque-se no seu lugar”.
O caso da menina Quvenzhané Wallis, de apenas nove anos, linda e cheia de potencial atriz de Indomável Sonhadora, é um ótimo exemplo recente. Quvenzhané sempre se mostra desinibida e segura, nunca abaixou a cabeça pra nenhum repórter, e em todas as vezes que (não foram poucas) fizeram chacota com seu nome, ela insistiu em querer ser chamada pelo seu nome, e que aprendessem a falar o nome dela, que se adaptassem a ela e não ao contrário. Na noite do Oscar 2013, eis que o twitter do site de entretenimento The Onion fez o seguinte comentário: “Everyone else is afraid to say it but that Quvenzhané Wallis is kind of a cunt, right?”. O que quer dizer mais ou menos (livre tradução), “Todo mundo tá com medo de falar, mas essa Quvenzhané Wallis é uma vadiazinha, não é mesmo?”
A palavra “cunt” é um palavrão usado para xingar mulheres (é primeiramente, um palavrão usado para vagina), um quase sinônimo do famoso “bitch” (vadia). O que leva alguém a falar isso sobre uma criança? Dá pra imaginar o mesmo sendo falado sobre Dakota Fanning? Deve ter representado o que muita gente deve pensar. Como ela é tão audaz? Como ela responde aos repórteres assim de cabeça em pé, como se estivesse falando de igual pra igual e ainda exigindo que seu nome seja falado corretamente? Nós vamos te chamar do que quisermos, já não era pra você estar ocupando esse lugar, mas estar ocupando esse lugar e ainda tão segura de si, sem estar humildemente reconhecendo que é um milagre você estar aí, é o cúmulo, sua pretinha metida.
Nós mulheres negras, vamos nos achar sim. Se achar é direito e dever nosso. Vamos nos orgulhar de nós mesmas, das nossas raízes, da nossa História, da nossa história pessoal, do nosso tom de pele, das feições, do corpo, do cabelo. Da posição que em estamos, do que conquistamos e do que somos capazes, da nossa força. E sempre buscar por mais, ter ciência do próprio talento, da nossa capacidade e do quanto podemos conquistar, o quanto nossa voz importa. Ter auto-estima, poder sobre nossos corpos e sexualidade, é nosso direito. Ser preta e metida. PRETA sim. E “metida”.
É fundamental para a nossa resistência e luta, a nossa autoestima. A consciência de que somos lindas. De que temos direito a autonomia sobre nossos corpos, cabelos, e sexualidade. De que vamos manter a cabeça em pé, te encarar de igual para igual, sempre cientes de que capacidade e talento para conquistar qualquer coisa não nos falta. Que somos muito fortes e não vamos engolir o mundo nos empurra goela abaixo, e não vamos nos submeter ao constante apagamento que nos é feito. Que podemos e vamos tomar todos os espaços, para o lamento de quem se incomodar.
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