Emagreci 45 kg no último ano e o processo de emagrecer foi um dos processos mais estranhos, complexos da minha vida. Fiz uma gastroplastia (redução de estômago) faz um ano e meio. Antes da cirurgia, fiz anos de acompanhamento, com muitas idas e vindas com nutricionistas e endocrinologistas, porque eu simplesmente não comia verduras e não gostava muito de comida. Isso mesmo, gente, eu não gostava de comida. Como criança, cada dia eu experimentava uma coisa nova de que eu dizia que não gostava: abobrinha, berinjela, quiabo, abóbora, mamão, melancia, melão…. Eu ainda não gosto dessas coisas, mas fui tornando meu paladar mais próximo do que eu considero ideal para um adulto para me preparar para cirurgia. Foi uma sábia decisão, porque pude seguir a alimentação recomendação médica sem traumas e sem sustos.
Também passei aproximadamente dois anos lendo fóruns e notícias de gente que tinha operado para que quando chegasse a minha vez, eu não me assustasse com nada. Deu certo, muitos estranhos e principalmente estranhas toparam conversar e compartilhar suas experiências. Lia as histórias da página black women losing weight, (Mulheres negras perdendo peso) e ia aprendendo com as histórias. A cirurgia foi um sucesso e eu não tive problemas decorrentes dela, embora eu tenha ficado mais seletiva para comer.
O processo pós-cirúrgico também foi de prestar atenção nos sinais, por vezes mais sutis, que o corpo nos dá sobre o que a gente come, sobre a conversa / o processo/ o trabalho / o namoro/ a amizade que está ruim e está doendo e pode despertar alguma compulsividade, é sobre ser consciente de si. Sobre ficar confortável na própria pele.
Obviamente, que a gente vai tendo fantasias sobre o corpo que vai ficar. Mas emagrecer para mim, foi especialmente um processo de aceitação e de descoberta. Eu emagreci 45 Kg e não sou magra, e não tenho o corpo padrão, de acordo com a sociedade. Nesse emagrecimento fiquei com mais peso de quando eu era adolescente e pesava 72kg e me achava gorda, afinal 72 kg não é um peso aceitável para uma adolescente, mesmo que você seja alta e grande, não é o que dizem? Suas pernas são grossas demais, seu quadril é largo, seu bumbum é grande. Não é delicado. Nos ensinam muito cedo a querer ser outra pessoa. E, lógico, uma emulação sempre vai ser inferior ao que você poderia ser, se você aceitasse ser você mesma.
Não estou afim de virar o próximo case de sucesso da revista barata da banca ou da internet. Nem postar fotos milagrosas do antes e depois. Não preciso ter o corpo da Sheron Menezes, da Adriane Galisteu, da modelo ou da moça que saiu na Corpo a Corpo do mês, daquela moça que malha sei lá quantas horas na academia e faz milhares de procedimentos estéticos. Bacana o corpo delas, mas o meu, o seu, o nosso, também é superbacana. Mais bacana ainda é correr sem cansar, cruzar as pernas, usar o sapato bonito com salto que você viu na loja, é bacana subir vários lanças de escada, é bacana comprar roupas em quase todas as lojas. Quase todas, porque sim, eu visto 44/46 e muitas lojas escolheram vestir pessoas que vistam até 42.
Pode parecer fútil ligar emagrecimento com consumo – e talvez seja mesmo-, porém era relevante para mim. Emagrecer foi um processo de pensar o que era importante para mim também. E o importante, era estar mais disposta. Comprar roupas mais legais era colateral, contudo, era bom também. O mercado plus size evolui muito no Brasil, mas ele é caro e ainda falta muito para agradar um público mais jovem. Eu me virava, conhecia todas as lojas, mas foi importante para mim ver uma vitrine, gostar da roupa, entrar e comprar. Tem 44, tem 46? Tem. Inclusive, me vestir melhor, mais colorido foi um processo de conhecer meu próprio corpo e amá-lo. Usar colorido, usar tecidos africanos, sobreposições, cores, cores, cores. Precisa usar preto para perecer mais magra? Não precisa. Uma vez uma mulher senegalesa, enquanto eu titubeava sobre comprar bijuterias grandes e coloridas, na rua, me disse: “Nada é exagero para uma mulher africana.” Eu acreditei e sigo a vida assim.
O processo de emagrecer e receber “elogios” das pessoas me encheu de perplexidades. Eu recebi parabéns de muitas pessoas por emagrecer e eu nunca soube muito bem como lidar com isso. Porque parabéns? Teve gente que não me reconheceu de primeira, teve gente que queria dizer “ nossa , como você emagreceu”, mas dizia “nossa, como você está diferente”, teve gente que dizia “ você já era bonita, mas…”
Emagrecer também me fez refletir sobre o lugar da beleza. Todo mundo dizia que me achava linda: “ ela é uma negra linda, ela se veste tão bem mas… ela está gorda.” Eu precisei me ver bela gorda, para emagrecer tranquilamente, porque ter o corpo mais aceito pelos outros (inclusive, pelos meus pais e familiares) deixou de ser uma questão….
Eu não mencionei? Sou uma mulher negra, uma mulher negra e gorda. Ser bela para uma mulher negra é um lugar já de desconstrução de tudo que a sociedade nos diz. A beleza no Brasil é um conceito racializado. Para a sociedade, a Gisele Bündchen é linda, a Naomi Campbell é uma negra linda. O lugar da beleza é do branco e é preciso politizar a beleza, não apenas no reconhecimento do seu valor no plano simbólico, mas também do que ela significa para legitimar experiências diversas de se colocar no mundo.
Foi a consciência racial que me permitiu ser bela e ver beleza, plenamente e sem concessões, nos meus iguais. Que me permitiu parar de alisar o cabelo e entender como isso era importante para minha afirmação racial. Como ouvi uma vez de um colega de trabalho meu – “Olha, eu como homem, fico impressionado ao ver mulheres negras com cabelos crespos, naturais, de tranças. Visualmente isso tira vocês do lugar de subserviência de que a gente está acostumado”.
Meu cabelo é bonito, meu nariz é ótimo, não tem problemas com meu quadril largo, sou grande, tenho estrias, estou maravilhosa, estou ótima. Estamos ótimas.
Obviamente, que temos muito problemas que não vão se resolver apenas com uma afirmação estética. Precisamos estar vivos, precisamos ser respeitados enquanto humanos em nossas potencialidades. Mas eu reconheço a força da vaidade, da beleza, da afirmação estética para nossa autoestima, ou ao menos para minha. Me enxergar bela é um processo de afirmação da minha negritude, da minha força interior e exterior. Não é ter o cabelo da moda, não é emagrecer, não é ter o bumbum na nuca … É o me permitir ser, ser quem eu sou. Esse lugar do belo é nosso e eu aceito porque ele foi construído junto com muitos outros que ousaram discordar do discurso dominante, que ousaram ser o que eram e me ensinaram o quanto isso era potente. Foi vendo o belo em sua plenitude em negras e negros que eu pude ver o belo em mim.
Mas eu também sou aquela outra preta. Aquela que apesar de se saber negra e de ter alguma auto-estima, achava que precisava mudar. Aquela que, adolescente, que já quis fazer plástica no nariz. Aquela que queria ter o corpo magro e sem curvas, que fez todas as dietas que você possa imaginar desde os doze anos de idade. Aquela que já achou que cabelo de kanekalon era coisa de gente pobre… Negros bem-sucedidos alisavam o cabelo – “você não viu o cabelo novo daquela (única) jornalista/atriz negra na tv?” –. Aquela que corria para fazer escova para ficar apresentável. Aquela que passou dias se olhando no espelho para se acostumar quando incentivada por outras estudantes negras e negros, colegas de universidade resolveu parar de alisar o cabelo. Aquela jovem que, depois que deixou o cabelo natural, ficou com medo de enfrentar as entrevistas nos grandes escritórios de advocacia.
Sou aquela que, mais tarde, descobriu que o racismo é um camaleão poliglota, e magra, gorda, de cabelo natural, cabelo alisado, você é um corpo negro e o racismo não vai te poupar. E chegando a essa conclusão resolveu enfrentá-lo de frente, coletivamente e com os cabelos naturais, com tranças enormes, com roupas coloridas, afirmada.
Quem vê minha autoestima, minha segurança saiba que ela é reflexo da consciência racial que me foi possível junto a movimentos sociais, ressignificando todo um imaginário sobre mim mesma, sobre o meu corpo e sobre meus iguais – e sobre o meus diferentes. Quem me vê vaidosa, segura de mim, postando selfies, quem nos vê tantas mulheres afirmadas por aí, não sabe que esse brilho externo é fruto de um processo, por vezes doloroso, de aceitação de si mesma e de aceitação plena, radical dos meus iguais. Um processo que dói menos se for coletivo e talvez seja mais profundo se for coletivo. É um processo de libertação dos nossos corpos, dos nossos corpos negros. Nos tornamos belas porque, coletivamente, estamos nos libertando.
Imagem – Reprodução Gladys Anderson.