Enfrentar a invisibilidade é o que delimita, de modo geral, o percurso das mulheres
negras na arquitetura e no urbanismo, tanto das que sonham em ser, quanto das que
já são profissionais da área. Essa invisibilidade vai além dos registros históricos e chega
ao presente, demarcando a presença de poucas dentro e fora das salas de aula.
Através de pesquisas não se veem arquitetas e urbanistas negras na historiografia, nos
congressos, no mercado de trabalho, no meio acadêmico etc., o que é inversamente
proporcional à quantidade de mulheres negras na sociedade, principalmente nas
periferias urbanas.
De acordo com o CENSO CAU (Conselho de Arquitetura e Urbanismo) de 2012¹, são
83.754 arquitetos no Brasil, sendo 61% do total composto por mulheres graduadas.
Infelizmente esse levantamento de dados não apresenta as porcentagens de negras
nesse último quesito. Sendo então invisíveis até nos censos da área.
Jornada carregada por preconceitos e obstáculos
São fortes os estereótipos que alimentam na sociedade brasileira, como se coletivamente existisse a crença de que existem postos de atuação prelimitados para as negras, e assim os percursos dessas mulheres passam por grandes desafios. Elas são constantemente questionadas sobre as próprias capacidades, principalmente nos estágios profissionais, em escritórios, laboratórios de pesquisa ou em canteiro de obras. Por se tratar de um curso que exige muita criatividade, iniciativa e domínio multidisciplinar, a mulher negra suporta uma carga muito maior de cobranças, uma vez que já são atribuídos a elas diversos papeis através da herança escravocrata, nos quais o intelecto não seja o protagonista, e sim o caráter de subserviência.
São inúmeros os relatos de mulheres negras que sofreram assédio sexual e moral dentro dos ambientes acadêmicos e profissionais do meio. Pode-se compreender que o incômodo de muitas pessoas privilegiadas, principalmente pela cor da pele, está em lidar com a presença de mulheres negras em espaços reservados historicamente às elites, e em vez de ocuparem posições voltadas ao entretenimento e/ou servidão, como de costume, elas usufruírem, também, o direito de se aperfeiçoarem e contribuírem com ideias e projetos. É como se fosse inadmissível que a negra tambémfosse capaz de raciocinar como eles, seguindo a lógica racista e a machista, fortemente enraizadas no Brasil. É fundamental fazer a leitura de que essa profissão se afirmou, ao longo da história, com uma forte predominância masculina branca.
Também não são isolados os relatos de mulheres negras que são “confundidas” nesses espaços de privilégio com secretárias ou qualquer outro posto que não seja o de arquiteta, pois é onde se comprova a resistência da branquitude em aceitar que elas também podem estudar e trabalhar na arquitetura e no urbanismo. O estranhamento e a desconfiança estão presentes no julgamento social, diante de uma mulher negra que se afirma arquiteta e urbanista neste país. Então, qual é a cara de uma arquiteta?
Definitivamente, para a elite branca e racista, essa cara não é negra.
“Onde estão as mulheres negras nessa história?”
Conscientes de que o racismo e o machismo (não se deve ignorar questões de classe, também) não são sistemas de opressões exclusivos da arquitetura e do urbanismo, contudo aqui se aponta para um campo disciplinar e profissional estruturado por tradições históricas pautadas na exclusão da mulher, ainda mais se esta for negra. Isso se justifica através da ausência de nomes das mesmas ao longo de toda essa história no contexto brasileiro.
Como um exemplo mais específico, é possível afirmar que a história do modernismo brasileiro, durante boa parte do século XX, não reservou espaço para a atuação e produção dessas profissionais no Brasil, uma vez que através de uma extensa pesquisa virtual não foi possível encontrar nenhum registro para conhecimento e difusão; todavia, não faltam nomes de homens brancos, que inclusive são bastante enaltecidos pelas respectivas produções. Contudo, apesar dessas tendências apontadas anteriormente, é possível encontrar no cenário norte-americano, também de acordo com uma pesquisa para a elaboração deste texto, o registro de oito arquitetas negras que conseguiram certa notoriedade, sob bastante discriminação racial e de gênero:
- Alberta Jeannette Cassell Butler (1926- 2007)
- Alma Fairfax Murray Carlisle (1927 – hoje)
- Amaza Lee Meredith (1895-1984)
- Beverly Lorraine Greene (1915-1957)
- Elizabeth Carter Brooks (1867-1951)
- Georgia Louise Harris Brown (1918-1999)
- Helen Eugenia Parker (1909-?)
- Martha Ann Cassell Thompson (1925-1968)
O racismo e o machismo são pontos levantados nas pequenas descrições encontradas sobre a carreira de algumas dessas, citadas anteriormente no livro African American Architects: A biographical Dictionary, 1865-1945, do autor Dreck Spurlock Wilson (publicado em 2004), onde dos 151 nomes de arquitetos colocados, somente oito são de mulheres, o que corresponde a cerca de 5% da lista de pessoas negras na história da arquitetura, do urbanismo e do paisagismo dos EUA. Apesar desses oito registros, que são até bastante resumidos e insuficientes, ainda é latente a necessidade de estudar mais sobre essas e outras profissionais negras na história da arquitetura e do urbanismo. A invisibilidade da mulher negra ainda é um forte entrave na história desse país, considerado desenvolvido.
Cidade para elas. Cidade para todas e todos.
Entende-se que o curso de arquitetura e o urbanismo tem um forte caráter político, pois é possível trabalhar, por exemplo, com planejamento e gestão de cidades, mas se percebe a carência de ideias que contemplem adequadamente a maior parte da população brasileira, isto é, de uma maioria negra e do gênero feminino². Desse contexto a atuação de outras mulheres negras nestes espaços, de poder de decisão e criação, pode dialogar de uma forma melhor, uma vez que estas compartilham de vivências muitas vezes semelhantes e conseguem pensar com uma sensibilidade mais próxima das demandas reais. Contudo, os projetos, na maioria das vezes, desconsideram a composição plural da população, e assim cidades continuam excluindo e criando dispositivos que dificultam a passagem e a permanência segura de mulheres negras no meio urbano. E quando se pensa numa cidade para a base da pirâmide social, de toda forma beneficia todo o restante.
Transcendendo a representatividade
Quando se alerta para a importância da representatividade, é quando se percebe a urgência de trazer à luz informações sobre a carreira e a produção dessas mulheres negras na arquitetura como um todo, tanto no cenário nacional, quanto no internacional. Perceber que outras conseguiram a formação e o ingresso no mercado de trabalho é um gatilho eficiente para estimular o percurso de tantas outras.
Representatividade importa e dá a base para outros sonhos.
Além disso, a luta contemporânea segue pela proporcionalidade, uma vez que é mais que necessário abrir portas, isto é, para a oferta de mais vagas para cotistas raciais, e assim podem atuar levando as próprias vivências, nas diversas faces da profissão dentro deste país, composto por cerca de 54% da população³ de negros. É quando se denuncia o quanto as mulheres negras possam deixar de serem as únicas da turma ou do trabalho, para que se torne mais comum a presença de outras nesses espaços.
Considerando que é preciso atentar-se sobre tantas outras complexidades que envolvem o lugar dessas mulheres na sociedade, ciente do quanto é massacrante lidar com vários sistemas de opressão ao mesmo tempo. O papel do Estado é crucial para estabelecer e manter políticas públicas adequadas, que promovam os acessos e o desenvolvimento dessas mulheres no ensino superior em diante.
Felizmente esforços estão sendo realizados para coletar e mapear os trabalhos das arquitetas negras. Assim, os poucos registros estão gradativamente emergindo. Mas ainda há muita pesquisa a ser feita para ofertar o merecido reconhecimento da produção dessas poucas e na maioria dos casos, profissionais bastantes talentosas.
Por fim, se depara com a urgência na descolonização na mentalidade da arquitetura e do urbanismo, englobando a própria história como fator crucial para inspirar e motivar os percursos de mulheres negras nesse âmbito. É preciso descolonizar a mente dos professores e alunos, descontruindo a visão elitista, machista, racista nos mesmos e também os responsáveis que promovem o mesmo mercado de trabalho. É preciso que esses últimos compreendam mais sobre o déficit de proporcionalidade e ofertem mais oportunidades, de modo justo e digno para tantas mulheres negras que almejam contribuir nas diversas escalas da profissão.
Siga o projeto Arquitetas Negras no facebook que partiu da iniciativa da arquiteta e urbanista Gabriela de Matos, que atua em Governador Valadares – MG, e que recebe a coordenação da arquiteta Bárbara Oliveira, de Recife-PE. Atualmente estamos mapeando as arquitetas e urbanistas negras ao longo de todo o Brasil através do formulário.
Vamos enegrecer mais esse espaço!
REFERÊNCIAS:
- Fonte: http://au17.pini.com.br/arquitetura-urbanismo/230/censo-cau-quem-sao-quantos-sao-quanto-ganham-os-arquitetos-288450-1.aspx
- Fonte https://www.geledes.org.br/mulheres-negras-sao-maioria-mas-ainda-sofrem-com-preconceito/
- Fonte: https://exame.abril.com.br/economia/o-tamanho-da-desigualdade-racial-no-brasil-em-um-