Por Ana Maria Gonçalves para as Blogueiras Negras
Dada a velocidade com que consumimos novas informações, os assuntos abaixo parecem ultrapassados; mas não são. Sempre atuais, tendem a ocupar mais espaço nas nossas vidas e nos noticiários na proporção em que mais negros ocupem espaços nos quais não eram vistos anteriormente. E isso não significa necessariamente que o racismo esteja aumentando, mas que lhe são dadas mais oportunidades de se manifestar, quando negros estão em situação de igualdade ou superioridade social ou econômica em relação a brancos. Acontece no Brasil e em qualquer lugar do mundo cuja economia já foi baseada em regimes escravocratas e/ou que agora tenta lidar com o impacto das novas correntes migratórias, principalmente as originárias de ex-colônias africanas. O que vemos manifestado nessas situações de racismo e xenofobia, além do ato em si e sua negação, é o desconforto do sujeito diante do espanto causado pela falha de sua invisibilidade. Quando pegas em um ato ou uma fala racista, as pessoas dizem que foram mal interpretadas e que não esperavam tal repercussão, pois até então se sentiam seguras, escondidas atrás de sua branquitude. E aqui uso o conceito de branquitude de Ruth Frankenburg, como sendo “um lugar estrutural de onde o sujeito branco vê aos outros e a si mesmo, uma posição de poder não nomeada, vivenciada em uma geografia social de raça como um lugar confortável e do qual se pode atribuir ao outro aquilo que não atribui a si mesmo”. Algumas análises sobre a atuação do ministro Joaquim Barbosa no STF e sobre as reações à vinda ao Brasil de médicas cubanas negras são bons exemplos dessa quebra de paradigma.
Não me espantou a indignação do jornalista Ricardo Noblat na nota “Que geração de jovens é esta?“. Para ilustrá-la, ele colocou a foto de um médico cubano negro sendo vaiado por jovens médicos brasileiros e escreveu: “A foto abaixo é emblemática de uma situação que deveria nos fazer corar e refletir.” E terminou com as exclamações: “Vergonhoso! E imperdoável!” Sim, a foto é emblemática, porque não podemos deixar de notar a negritude do médico. E é mais emblemático ainda que Ricardo, ao ilustrar a nota com a foto de um médico negro, não vê incoerência entre sua condenação dos médicos brasileiros e sua atitude em um artigo escrito havia menos de 10 dias, no qual ataca o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Joaquim Barbosa: “Para entender melhor Joaquim acrescente-se a cor – sua cor.” Na nota sobre os médicos, Ricardo ainda pergunta “Que geração de jovens é esta?”, como se não soubesse a resposta, como se não estivesse tratando de uma geração que, assim como ele, reagia aos médicos cubanos acrescentando a cor – a sua cor. A geração hipocritamente criticada por Ricardo é filha, neta, bisneta e tataraneta daquelas outras gerações que, protegidas pela branquitude, acham que podem julgar negros tendo como base a cor. Essa geração não nasceu por combustão espontânea, mas cresceu vendo parentes, amigos, cônjuges e formadores de opinião questionarem o que consideravam ousadias de negros com frases do tipo “quem esse negro/essa negra pensa que é?”, do mesmo modo que o jornalista Ricardo começa seu artigo perguntando “Quem o ministro Joaquim Barbosa pensa que é?”. Para mais tarde nos lembrar que, para respondermos essa pergunta, não devemos esquecer a cor. Sempre a cor, e sempre a do outro. A do negro.
Faço questão de chamar o jornalista do texto racista citado acima de Ricardo, apenas. Porque é óbvio que ele, ao escrever seu texto, sabia que aos escravos trazidos para o Brasil era negada a manutenção do nome e sobrenome, assim como a linhagem e a ancestralidade, cortando as raízes de sua árvore genealógica. Ricardo faz isso com Joaquim Barbosa, chamando-o apenas de Joaquim. Procurem outros textos nos quais ele critica os ministros brancos do STF e verão que a nenhum deles o sobrenome foi negado. E a nenhum deles a invisível branquitude é posta como condição primordial para lhes entender o caráter. Apenas a Joaquim Barbosa, aquele que não pode ser entendido a não ser como eterno escravizado à herança histórica de sua cor. Se chegar a ler esse texto, Ricardo com certeza vai negar que era essa a intenção, porque não tinha pensando nisso. Não precisa pensar; e essa é uma das maiores artimanhas do racismo: está internalizado, naturalizado. Ricardo acha que pode dispensar ao negro Joaquim Barbosa o tratamento que neste último é condenado. Ricardo acha que pode ensinar ao negro Joaquim Barbosa como se comportar em sociedade. Ricardo acha que pode manifestar publicamente seu racismo quando o negro Joaquim Barbosa não age como o poço de candura e gratidão que deveria ser inerente aos negros ocupando posições de destaque.
O mesmo ato cometeu o jurista, professor e ex-desembargador do TJ-SP, Walter Maierovich, em um artigo na revista Carta Capital, no qual chama Joaquim Barbosa de “o magistrado coiceiro”. A tentativa de desumanização é evidente, quando mais adiante o artigo nos diz que a Joaquim Barbosa falta “o trato urbano e civilizado para assumir a presidência do STF”. Curiosamente, Walter Maierovich também escreveu artigo condenando a atitude dos médicos brasileiros “acerca da presença, em território nacional, de médicos estrangeiros”. O que Walter Maierovich se esqueceu de dizer foi que, na verdade, a atitude não tem sido em relação a médicos estrangeiros, mas a médicos cubanos, entre os quais há muitos negros. Pode ter havido, mas não vi nenhum corredor polonês hostilizando médicos importados na Europa. Estes são bem-vindos, seguindo a tradição da política de imigração brasileira que, por muitos anos depois da escravidão, proibiu a entrada de negros no território nacional, e que até há bem pouco tempo, dizia:“Atender-se-á, na admissão dos imigrantes, à necessidade de preservar e desenvolver, na composição étnica da população, as características mais convenientes da sua ascendência européia (sic), assim como a defesa do trabalhador nacional.”
O que o ministro Joaquim Barbosa faz (sendo o único negro no STF), e o que os médicos cubanos fazem (ao vir exercer a profissão em um país no qual apenas 2,66% dos médicos são negros), com suas “características inconvenientes”, é desafiarem a reserva de mercado exercida pela branquitude nesses ambientes de trabalho e, pior ainda, desafiarem a imagem que se tem de pessoas aptas e ocuparem essas atividades. O racismo brasileiro faz com que não nos espantemos com a quantidade desproporcional de negros ocupando posições subalternas, e ainda questionemos sua capacidade quando consegue vencer esse ciclo. Ricardo faz isso em seu texto, e daqui a pouco volto ao assunto, mas antes queria destacar o “desabafo”, no Facebook, da também jornalista Micheline Borges: “Me perdoem se for preconceito, mas essas médicas cubanas tem uma Cara de empregada doméstica. Será que São médicas Mesmo? Afe que terrível. Médico, geralmente, tem postura de médico, se impõe a partir da aparência… (…)”.
É claro que é preconceito, e Micheline Borges já sabia disso, “desculpando-se” antecipadamente. No entanto, quando o preconceito é apontado, a jornalista pede que respeitem sua opinião. Para Micheline, fazer comentário racista é exercer a liberdade de expressão. Mais tarde, diante da proliferação da postagem e das críticas recebidas, Micheline deletou seu perfil e deu algumas declarações à imprensa, justificando-se. “Eu peço desculpas, foi um comentário infeliz, foi mal interpretado, era para ser uma brincadeira, por isso peço desculpa para as empregadas domésticas”, disse em uma delas.
Não houve pedido de desculpas para as médicas cubanas, provavelmente porque Micheline Borges pode se dar ao luxo de prescindir de seus serviços. No entanto, desculpa-se com as empregadas domésticas, de quem, provavelmente, não quer abrir mão. Em outra matéria, Micheline tanto reclama de quem a criticou, como se deles fossem o erro – (…) as pessoas não aceitam o contraditório. Você não tem o direito de expressar a sua opinião, que logo vêm as críticas” – quanto nega o que diz na primeira, praticamente dizendo que não tem do que se desculpar, pois não foi preconceituosa: “Não agi, de forma nenhuma, com preconceito. Só acho que a aparência conta, sim. Que é algo importante”.
Micheline Borges tenta disfarçar, empregando exemplo de outros profissionais que ela considera fundamental que mantenham a “boa aparência”. Fala em “Se eu chegar numa consulta e encontrar um médico com Cara de acabado ou num escritório de advocacia o advogado mal vestido vou embora”, mas não era disso que ela estava falando quando se referiu às médicas cubanas. Retrato-me se me mostrarem críticas da jornalista à aparência das médicas brasileiras que saíram às ruas para protestar contra o programa Mais Médicos. Quase todas ou praticamente todas brancas, usando os mesmo jalecos brancos que aparecem em todas as fotos que vi documentando a chegada das médicas cubanas. Ou seja: vestiam-se da mesma maneira, portanto não me parece ser um comentário que leva em conta a questão da roupa, mas da cor mesmo. A atitude da Micheline é reflexo dos muitos anúncios que todos nós nos cansamos de ver nos jornais brasileiros, pedindo que os candidatos aos empregos tivessem “boa aparência”, sinônimo de serem brancos. Para Micheline Borges, as médicas cubanas não têm “boa aparência” e, portanto, deveriam ser empregadas domésticas, posição na qual ela deve estar acostumada a lidar com negros. Posição na qual, do alto de sua branquitude, ela se sente confortável.
Micheline Borges, assim como boa parte da população brasileira, não está preparada para médicos e médicas negros, como os que estão se formando através de ações afirmativas. Aliás, voltando ao texto do Ricardo, acho que é exatamente sobre isso que ele está falando, pois nos lembrou insistentemente que o ministro Joaquim Barbosa foi beneficiado por ação afirmativa do ex-presidente Lula. O que é verdade, e mais que necessário, num sistema judiciário ainda tão branco e despreparado para lidar com “assuntos de pretos”, como são considerados os casos de racismo. Mas também é verdade que o currículo de Joaquim Barbosa era infinitamente superior aos outros candidatos considerados, inclusive os brancos. Como Ricardo parece ter sabido antes, mas esquecido. E por isso desqualifica-o, embora já tenha sido até elogioso, mesmo lhe negando o sobrenome, em artigo no qual fala que o ministro “atua com a independência que se espera de todo juiz”. Ou quando ressalta que “No STF não há um único ministro para o qual seja estranha a arte de fazer política. E todos fizeram para chegar onde estão. Joaquim, não. Submeteu-se a concursos para conquistar cargos. E não pediu a ajuda de ninguém para ser promovido a ministro do STF.”, ou ainda : “Joaquim Barbosa tem um notável currículo. O que pesou mais para que virasse ministro, contudo, foi sua cor. Em certa época, Lula encantou-se por ministros temáticos – negro, mulher, do Nordeste, do Sudeste.”. Nesse caso podemos deduzir que Ricardo tem a palavra cota em mente, pois a usa no parágrafo seguinte para falar de Dias Tóffoli (duplo sobrenome, sempre, mesmo quando Ricardo poderia ter razões pessoais para pegar pesado: “Dias Tóffoli entrou na cota do PT. Dele não se exigiu notório saber jurídico. Por duas vezes foi reprovado em concursos para juiz.”
Deixo para a coluna de Míriam Leitão a defesa da trajetória de Joaquim Barbosa, de quem Ricardo, respaldado por anônimos, passa a dizer que falta grande conhecimento de assunto de Direito. É interessante perceber também que, nesse artigo, o jornalista diz que o “problema” de Joaquim Barbosa “Não é uma questão de maus modos. Ou da educação que o berço lhe negou, pois não lhe negou“. Ou seja, não é uma questão de classe, já que todos sabemos do ministro . É de cor mesmo, principalmente se levarmos em conta o que diz aqui: “Foi do pai que Joaquim herdou o temperamento belicoso.” Ou seja, se é exatamente o “temperamento belicoso” que Ricardo critica em Joaquim Barbosa ao defender o xará branco de sobrenome Lewandowski, o contraditório fica bastante explícito. A coerência não interessa a Ricardo, que quer e acha que pode atacar Joaquim Barbosa apenas por algo que ele herdou do pai: a cor. A sua cor, da qual, usando o possessivo de terceira pessoa, Ricardo faz questão de se afastar.
Pode ser mera coincidência, principalmente porque ele já negou que tenha qualquer pretensão, mas é interessante observar essas contradições de Ricardo exatamente no momento em que se cogita a candidatura de Joaquim Barbosa para presidente do Brasil. Para afastar de vez essa hipótese, nada mais fácil do que ressaltar o estereótipo do homem de “temperamento belicoso”, ou do “angry black man”, que Barack, como diria Ricardo, soube muito bem evitar, a custo de nunca ser eleito. Muitas vezes, pecando, inclusive, pelo excesso de cuidado. Aqui, aqui e aqui há matérias sobre o assunto. Isso me lembra a profecia furada de Gilberto Freyre, que disse que, no Brasil, um negro tinha muito mais chance de chegar à presidência da república do que uma mulher. Freyre, como também prova suas teorias acerca da democracia racial que aconteceria por wishful thinking, desconsiderou a profundidade com que o racismo está entranhado na sociedade brasileira; Ricardo e Micheline, ao dizerem o que disseram e permanecerem impunes, contaram com ela, mesmo que inconscientemente. Mas, pelo menos, a gente já vê, critica, aponta o dedo. A branquitude está cada vez mais nua.