Um texto vem pronto em minha cabeça às 5h18 da manhã e ele começa com a frase do título. Às vezes eu acordo de madrugada vendo palavras de olhos fechados.
Um dia, fui escrever uma mini biografia e não sabia dizer o que eu sou na literatura. Disse a uma amiga: eu não sou escritora, pois não tenho livros publicados, não sou poeta pois não sei bem o formato do que eu escrevo, o que eu sou? O título eu não fui capaz de encontrar, mas achei suficiente dizer que “quando o mundo me sufoca, eu escrevo pra me libertar”.
Se algumas pessoas veem nas imagens do mundo e do cotidiano fotografias, melodias, performances, e outras tantas coisas, eu vejo o mundo em palavras escritas. Porque a arte pra mim é apreender, sentir o mundo de um jeito muito particular – parece que artista sente tudo e sente muito, o tempo todo – e devolver pra esse mesmo mundo algo de tudo isso. Eu vejo o mundo em palavras escritas desde quando eu não sei me lembrar. E eu não sou uma escritora?
A minha primeira redação pro vestibular foi uma crônica sobre como estávamos vivendo de maneira tão acelerada, quase mecânica, no avançar dos “tempos modernos”, estávamos “Vivendo como carros”, esse foi o título, e fui argumentando em torno dessa metáfora para falar dos impactos das tecnologias na vida cotidiana. Tirei um 5,65 e um professor me disse que textos argumentativos não podem ser poéticos/fictícios/literários.
Para além dos diários precoces, dos 12 aos 17 anos escrevi cotidianos e reescrevia músicas que me tocavam em um blog; parecia que sempre tinha alguém que era capaz de dizer exatamente o que eu sentia. Eu basicamente contava histórias, e uma pessoa uma vez comentou em um dos meus textos que eu deveria ser canonizada. Não entendi muito bem o que isso significava, mas ele explicou que era um elogio.
Quando fui pra universidade, ela me sugou & privou de todas as energias artísticas: parei de cantar, parei de tocar, parei de dançar e de escrever – supostamente. As minhas cartas, para outras pessoas e para mim mesma, invalidariam esta suposição. Minhas e meus professores reagiam sempre com surpresa às notas das minhas provas e trabalhos acadêmicos, e eu ouvia com muita frequência: “Mas foi você quem escreveu isso aqui?”
Eu não era uma pessoa que falava muito em sala de aula, isso só acontecia nos seminários e quando eu também as surpreendia por falar bem, elas diziam, eu pensava “Cê acha memo que eu falo bem? Cê precisa me ver escrevendo.” Nunca entendi muito bem a surpresa das pessoas, mas foi lendo e escutando mulheres negras que eu entendi que eu não as surpreendia: eu era subestimada e inferiorizada por elas. – E eu não sou uma escritora?
“Porque o mundo que crio na escrita compensa o que o mundo real não me dá” me disse Gloria Anzaldúa em “Falando em línguas” quando se pergunta o que a leva a escrever e Sophia Cantave completa: “Eu acreditava antes e tenho certeza agora que a palavra escrita, em qualquer formato, me faz juntar os pedaços dispersos dentro de mim”. Quase 10 anos acadêmicos depois, é nesse espaço que minha escrita germina em flor: no caos da elaboração da minha dissertação de mestrado, o poema “Amarela e floresce, ipê” me vem de forma visceral. Enquanto eu escrevia as academicices, um texto gritava em minha mente, querendo sair, e eu precisei parar de escrever aquilo para ouvi-la e então (d)escrevê-la. Em um poema publicado aqui eu faço uma convocação ancestral à todas nós: chega de silêncios.
A frase do título faz menção à denúncia épica no discurso de Sojourner Truth “E eu não sou uma mulher?” em 1851, mencionada em outros textos como o potente convite de Clélia Prestes no artigo “Não sou eu do campo psi? Vozes de Juliano Moreira e outras figuras negras”. Em texto escrito pro instagram do Selo Literário Independente Itan em 2020, minha grande amiga e escrevivente Abayomi Jamila e mais tarde, em suas aulas/oficinas sobre a escrita de si, nos convida pro movimento que faço agora de pensar sobre a nossa própria escrita. Na noite de ontem, quando contava a outro grande amigo e intelectual Augusto Ventura sobre a confusão gerada pela mini-bio, ele me pergunta: “Por que você não escreve sobre isso?”
Hoje eu chego nos espaços institucionais falando – e muito! – e menciono as minhas conquistas acadêmicas e profissionais. Já na literatura, sigo buscando critérios subjetivos para me autorizar escritora de maneira confortável, justa, que não ativem (ainda mais) a impostora em mim, que me façam sentido. Por razões várias, talvez eles nunca cheguem.
O que importa é que eu já aprendi, com as minhas e com os meus, que eu preciso ser a minha própria referência, e que eu preciso de contra referências saudáveis pra seguir. Então aqui e agora, parece suficiente dizer assim: quando o mundo me sufoca, eu escrevo pra existir.
Referências mencionadas
Anzaldúa, Gloria E. (2000). Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do Terceiro Mundo. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, 8(1), 229-236. Disponível em: https://doi.org/10.1590/%25x
Cantave, Sophia. Home is… In: Danticat, Edwige. Butterfly’s Way: Voices From the Haitian Dyaspora in the United States. New York: Soho Press. n.p. Edição do Kindle, 2001.
Jamila, Abayomi. “O que me autoriza a ser um escritor(a)?” – Postagem de 28 de Agosto de 2020 na página do Selo Literário Itan, disponível em: https://www.instagram.com/p/CEcSiu_J72B/
Poema “Oração”, disponível em: http://blogueirasnegras.org/oracao/
Prestes, Clelia R. S. (2020). Não sou eu do campo psi? Vozes de Juliano Moreira e outras figuras negras. Revista da ABPN. v. 12, n. Ed. Especial, p. 52-77. Disponível em: http://dx.doi.org/10.31418/2177-2770.2020.v12.c3.p52-77
Selo Itan (Página no Medium): https://medium.com/seloitan