Nós Blogueiras Negras repudiamos com veemência a postura de silenciamento institucional e ideológico da Faculdade Zumbi dos Palmares no que tange seu posicionamento diante de todas as mulheres negras, dentro e fora da instituição, que se manifestaram contra o seriado o “Sexo e as Nega”. Declaramos portanto nosso irrestrito apoio à Ellen de Lima Souza, mulher negra e coordenadora do curso de Pedagogia da instituição, afastada por manifestar seu ponto de vista contrário à presença de Miguel Falabella na faculdade, sempre lembrando que não se trata de uma questão pessoal, mas da luta por uma representação da mulher negra que não seja estereotipada, sexista, racista; apenas humana enfim.
Em recente entrevista concedida ao site Afropress (originalmente publicada em seu site, agora fora do ar em função da ação de hackers), o diretor da faculdade Zumbi dos Palmares José Vicente, afirma de maneira acintosa que a crítica de mulheres negras ao seriado de Falabella se trata simplesmente de “emocionalismo exacerbado”, advogando que nossas observações e demandas foram baseadas em uma “leitura errônea equivocada e que não considerou sequer o direito à livre manifestação de pensamento, o direito, inclusive, de você pelo menos argumentar”.
Sustentar que a crítica de mulheres negras tem a ver com pura emoção é a defesa de que não somos capazes de construir uma avaliação perspicaz, astuta e concreta de uma realidade que diz direito apenas a nós mesmas e não a homens negros. E o nome disso é machismo. Nós temos voz e argumentos, exigimos que sejam respeitados, acolhidos e não brutalmente silenciados como tem sido prática histórica de alguns setores do movimento negro, que nos preferem caladas.
Em nenhum momento, nós mulheres negras que nos manifestamos contra o seriado, dentro e fora da instituição Zumbi dos Palmares, atropelamos quaisquer “preceitos de consenso, de prudência ou de responsabilidade”. Seguiremos, por meio de nossa capacidade de falar coerentemente por nós mesmas, denunciando o racismo e o machismo seculares que recaem sobre nossos corpos e existências. Quando um homem negro se recusa a entender nossa luta, menospreza nosso discurso e desrespeita nosso lugar de fala, apenas manifesta sua aliança para com um sistema de coisas onde a mulher nada mais é que um objeto.
A nota em repúdio à presença de Miguel Falabella na faculdade jamais teve caráter “indevido, ilegal ou questionável”. Independentemente de ter sido construída quando se aventava a possibilidade de o autor ser premiado pela instituição ou apenas participar de um debate, caracterizou apenas o direito coletivo à livre manifestação de ideias por parte das mulheres negras que a faculdade pretende empoderar. É preciso entender que o silenciamento à crítica de “Sexo e as nega” também é machismo, também é racismo ou sua reprodução.
O livre exercício de ideias gera poder, jamais desconforto, a menos que os incomodados compactuem com o racismo e o machismo que nos tem sido dirigidos. Entendemos que o posicionamento da faculdade Zumbi dos Palmares deveria ser de escutar e acolher todos os discentes e docentes que assinaram a nota, em sua maioria mulheres negras. Como a faculdade, diante de um fato tão grave de flagrante perseguição ideológica, pode simplesmente “tocar a vida” e “seguir adiante” quando um dos preceitos mais caros à academia é gravemente desrespeitado? Quando a mulher negra segue sendo violentada dentro e fora da televisão?
Como fazer referência ao “debate crítico de ideias é o sentido e o fundamento da academia”, se aqueles que discordam são silenciados e perseguidos ideologicamente em função de suas opiniões? Se esse direito é defendido apenas para o agressor e seus aliados e não para a mulher negra, que mais uma vez é vítima de violência simbólica? Para que a premissa que motivou a construção da faculdade Zumbi dos Palmares seja cumprida, é preciso que a luta de mulheres negras seja considerada nada menos que legítima dentro da instituição. Caso contrário, temos apenas uma ladainha de intenções que jamais terá como propósito uma sociedade equânime.
Nós, Blogueiras Negras, iremos insistir e enegrecer. Considerar que nossa reação ao machismo e racismo que incidem sobre nós, mais uma vez e tudo o que foi dito na nota de repúdio é uma “agressão gratuita, deselegante e desrespeitosa” se trata de uma falsa simetria que não condiz com uma instituição acadêmica, sobretudo no âmbito de uma faculdade que tem como motivação o empoderamento da população negra. Estamos apenas agindo em legítima defesa. E agiremos quantas vezes for preciso, venha a violência de quem for.
Em função disso, manifestamos também nosso repúdio ao modo irresponsável com que a redação da Afropress conduziu a entrevista ao diretor José Vicente, pois evidenciou sua concordância com a ideia de que as críticas ao seriado “Sexo e as Nega” foram motivadas pelo desrespeito às diferenças e pelo pensamento único. Estamos apenas exercitando nosso direto ao debate, temos voz e não nos calaremos. Entender que o exercício desse direito se trata de “fanatismo”, “xiitismo” é de uma desumanidade atroz, comparável aquela que temos visto no seriado.
Por acaso é por meio do silenciamento da mulher negra que alcançaremos uma sociedade equânime? Trata-se de uma grave ofensa sugerir que nós mulheres negras somos capitãs do mato, é um grave desrespeito à luta que se diz defender. Estamos exercendo nossa fala, por meio da qual exigimos respeito, o que é diametralmente oposto à “intolerância para com a diferença”. Não se deve confundir em hipótese alguma a reação de quem apanha com a ação daquele que bate. Quem o faz deveria em primeiro lugar se indagar de que lado está do debate ao se colocar lado do agressor. Que nenhum homem negro nos diga como devemos militar em prol de nossos interesses. Quem sabe onde e como dói o “Sexo e as Nega” é a mulher negra.
O que alguns chamam de “Movimento Negro tradicional” sempre ignorou nossas demandas. Porém, jamais estivemos caladas e não aceitaremos ficar nos bastidores para que homens negros tenham todo o protagonismo no combate ao racismo que nos atinge de maneira flagrante e única enquanto mulheres. Ou para que este mesmo homem negro acredite que seu machismo se justifica. A luta da mulher negra é pautada pela defesa da equidade. Nos acusar de intolerância e racismo inverso não apenas demonstra um profundo desconhecimento do que é racismo, mas também do machismo do qual somos vítimas, machismo que também vem de homens negros.
Em nenhum momento tivemos como objetivo atingir as mulheres negras que estão trabalhando no seriado. Estamos disputando significados e o direito por uma representação digna. Jamais dissemos que o problema é o sexo, mas sim a hipersexualização, a objetificação, a estereotipia, a redução de sentido social, toda uma gama de violências simbólicas que vão para além da presença de atores negros, a quem, mais uma vez, não estamos atacando. Nosso objetivo é que eles estejam si na televisão e na mídia, mas não de qualquer modo. Sem qualidade, a representação de pessoas negras serve apenas ao racismo.
Se a faculdade Zumbi dos Palmares realmente é uma “instituição que produz o debate crítico” e amante da “livre manifestação de pensamento”, deveria considerar o imediato retorno de Ellen de Lima Souza para o quadro de docentes da instituição, bem como a feitura de um debate em que todas aquelas que redigiram e assinaram a nota em repúdio à presença de Miguel Falabella na faculdade fossem ouvidas e não silenciadas. Sem isso, ficaria ainda mais evidente de que lado a instituição está do debate e quais princípios defende.