SAARTIJE BAARTMAN – OBJETO DE ESTUDO NA CIÊNCIA EUROPEIA
Eu vim para te tirar dessa miséria
para levá-lo longe de olhares indiscretos
Artificial monstro
vivendo na escuridão
com suas garras do imperialismo
que seu corpo dissecado pedaço por pedaço
que associado a sua alma a Satanás
e declarou-se o deus absoluto.
De Diana Ferrus para Saartije Baartman
Saartije Bartmaan foi uma mulher negra que viveu entre África e Europa durante os séculos XVIII e XIX. Poucas pessoas a conhecem, especialmente poucas mulheres negras a conhecem e sabem que Saartije entrou para a história da ciência no mundo. Eu mesma conheci Saartije apenas no final do ano de 2012. Sua história não difere das histórias de outras negras africanas durante os séculos em que a Europa dizimou o território africano: ela foi sequestrada para servir, foi torturada, estuprada, foi enganada e explorada financeira e intelectualmente. Morreu aos 25 anos.
Sarinha (Sartije em português) nasceu nas proximidades do rio Gamtoos (Cabo Oriental/África do Sul), e fazia parte do povo khoisan. Desde a infância, foi trabalhadora da terra e serviçal de famílias brancas. Por causa de seu porte físico foi exotificada, objetificada, animalizada, hiperssexualizada, humilhada e obrigada a participar de apresentações públicas como uma aberração humana (zoo humano). Entre as características físicas de Saartije estavam o quadril largo, bunda grande e o clitóris avantajado. Não tardou para também chamar a atenção da ciência naturalista e eugenista europeia e virar objeto de estudo na Academia francesa.
Existem diversos textos que contam sobre a vida e a morte de Sarinha e muitos estão traduzidos em português. No filme Vênus Negra é possível conhecer um pouco das tenebrosas situações vividas por Saartije. O filme não é um documentário, quem interpreta Saartije é a atriz Yahima Torres. Mas a obra mostra, inclusive, quando a ciência francesa descreve Saartije como uma aberração, uma selvagem, uma anomalia. É comparada a um macaco, entre outras coisas. É um dos filmes que evidencia, inclusive, como a ciência europeia foi competente na solidificação do racismo contra a população negra africana.
Saartije não era invisível. Todos falavam sobre ela. Todos a tocavam. As pessoas concorriam para vê-la. Pagavam qualquer preço de ingresso. Saartije existia. E como urubus em carniça, os europeus queriam levar um pedaço de Sartije para alimentar suas entranhas e vaidades de pretendida raça superior. Mesmo depois de sua morte, Saartije continuava a servir a euforia europeia, atraía curiosos. Saartije era importante. Ficou em exposição na França por mais de 160 anos. Antes isso fosse realmente um benefício à memória e história das mulheres negras na diáspora africana.
Saartije Bartmaan viveu e morreu como um objeto de estudo da universidade e da ciência. A partir de Sarinha, as mulheres negras foram categorizadas por diversos estudos biológicos, antropológicos, psicológicos e até comunicacionais (uma vez uma pessoa de “notório saber” me disse que mulheres negras têm menos aptidão à tecnologia, segundo estudos de sei lá o que). Saartije teve pouca, ou quase nenhuma, oportunidade de falar por si mesma, de falar como se sentia e de como via o mundo a partir de seu olhar de mulher “selvagem”. Na única vez que foi “ouvida”, foi também coagida e seduzida para proteger seus algozes e Saartije continuou escravizada. Não protagonizou nada. Nem a própria vida.
Entre o século XVII e o nosso aclamado século XXI, muita coisa aconteceu e muita coisa mudou. Para a população negra da diáspora africana, penso que entre as coisas mais significativas está a abolição da escravidão negra em todo o mundo. Inclusive estudos científicos foram realizados para provar que a cultura eugenista estava completamente equivocada. Eu não teria competência de enumerar aqui a quantidade de mulheres negras que serviram aos estudos acadêmicos e científicos ao longo desses anos e que ainda assim permaneceram interditadas.
HERANÇA EUROPEIA – MULHER NEGRA AINDA É MAIS OBJETO DO QUE SUJEITA
Aonde quero chegar com esse prelúdio tão grande? Quero falar do quanto a Academia e o mundo da ciência ainda disseca as mulheres negras, ainda nos tratam como meros objetos de estudo. Me provoca gastura e desgosto que mulheres negras continuem a ter menos acesso aos espaços escolares, acadêmicos e científicos e isso ainda parece um benefício aos estudiosos e doutores que se fartam em diplomas e titulações às custas de mulheres negras, assim como foi com Saartije Baartman.
Eu cursei mestrado em comunicação em uma universidade pública e com bolsa da CAPES. Privilégio! Ao longo daqueles dois anos, não li uma linha escrita por uma mulher negra entre as teorias que estudei. Entre os nomes dos notório saber, nenhuma mulher negra. Não foi durante o curso que tive acesso às brilhantes e insurgentes contribuições que mulheres negras deram/dão ao conhecimento científico, sobretudo a partir de suas próprias vivências. Eu não fui estimulada na Academia a dar voz a mulheres negras iguais a mim, não fui estimulada a estudar sobre negritude, sabia tudo sobre Foucault, Boaventura de Sousa Santos e Michel Mafesoli. Sabia nada sobre os estudos de Lélia Gonzalez, Patrícia Collins e Chimamanda Adichie. Sim, eu enegreci tarde. Mas foi também durante o mestrado que eu me tornei conscientemente uma Feminista Negra Interseccional e então alcei voos ao mundo negro que eu nem imaginava. O Feminismo Negro me reconstruiu.
ACONTECE QUE NAS DUAS ÚLTIMAS SEMANAS VI (DE NOVO) HOMENS PROTAGONIZANDO ESTUDOS SOBRE MULHERES NEGRAS NA ACADEMIA. DETERMINANDO O QUE DEVEMOS OU NÃO ESTUDAR, QUESTIONANDO AS SEQUELAS DO MACHISMO E DO RACISMO E O PORQUÊ DE TANTA VIOLÊNCIA CONTRA O HOMEM.
Já pensou se Saartije tivesse se insubordinado e reagido? Já pensou se Saartije tivesse se recusado a ser um objeto de estudo? Imagina como o corpo de Saartije teria sido poupado? Já pensou se Saartije tivesse ido à forra como Sojourner Truth e aberto a boca para falar de si própria? E se ela tivesse gritado e quebrado as correntes que a obrigavam a se expor nos zoológicos humanos e nas festas particulares da burguesia europeia? E se Saartije tivesse sido reconstruída pelo Feminismo Negro?
Quando Chimamanda Adichie afirma que qualquer pessoa pode ser feminista, desde que lute pela igualdade econômica, política e social entre as pessoas, e eu vejo então homens se posicionando como feministas, como antirracistas e se dizendo atacados ou violentados por mulheres quando eles estão a falar sobre feminismo, é quando eu paro e penso em Saartije. No quanto nós, do Feminismo Negro do século XXI, devemos nosso protagonismo a corpos como o dela. A homem nenhum.
É esse um dos principais desafios do Feminismo Negro: lutar e buscar romper com a perspectiva da mulher negra como objeto de estudo e como categorias analíticas. Possibilitar que cada vez mais mulheres negras alcem voos inimagináveis e se reconstruam enegrecidas. Nossa luta é para AS mulheres negras se empoderarem de si mesmas e então tenham condições de protagonizarem cada vez mais mesas de debate dentro dos espaços acadêmicos como DONAS dos próprios estudos e como forma de autoconhecimento.
EM NOME DE SAARTIJE – POR MAIS MULHERES NEGRAS SUJEITAS
Em um do encontros mencionados, um homem branco, doutor, diante de uma plateia de mulheres negras das diversas possibilidades de corpos e construções, nos disse “estudem sobre branquidade, vocês precisam entender sobre branquidade” e “se proponham ao diálogo, estamos perdendo a capacidade de diálogo” e este mesmo moço se diz feminista e antirracista. Se existe uma coisa potencialmente falaciosa nesse mundo é o discurso. Como ousa um homem branco com o microfone nas mãos dizer a uma plateia de mulheres negras o que elas devem estudar, saber ou fazer?
Eu quase ouvi um eco do Dado Dolabella ali, olha. Achei que ia ouvir “sou mais feminista e mais negro do que muitas de vocês”. E ainda querem diálogo.
SE HÁ ALGO QUE NÓS MULHERES NEGRAS NOS DAMOS CONTA QUANDO NOS DESCOBRIMOS NEGRAS É QUE SABEMOS TUDO SOBRE BRANQUIDADE E NADA SOBRE NEGRITUDE. SABEMOS TUDO SOBRE ONDE DEVERÍAMOS ESTAR NA PERSPECTIVA DA BRANQUIDADE E NADA SABEMOS SOBRE COSMOVISÃO AFRICANA OU EM COMO NÓS MESMAS PASSAMOS ANOS DE NOSSAS VIDAS USANDO MÁSCARAS BRANCAS.
Outro doutor estuda as religiões de matriz africana. Ouvi sua fala do início ao fim dando categorias e analisando o culto aos orixás, sem que ele explicasse em nenhum momento de que culto falava. Eu sou candomblecista iniciante, mas quanto mais ele falava, menos eu sabia do que ele estava falando. Ao final, no corredor, eu perguntei a ele que matrizes compunham seu estudo. Ele me olhou meio sem entender o que eu perguntava. Expliquei: “o candomblé faz parte do estudo?”. Não fazia. Era a Umbanda. Mas em nenhum momento ele sequer explicou as diferenças entre as matrizes, ou mesmo as diferenças da Umbanda. Mais uma vez entramos como objeto de estudo reunidas numa mesma categoria. Assim como aconteceu quando tomaram o biotipo de Saartije como o biotipo de todas as mulheres negras.
Outro episódio foi com um homem estudioso do Feminismo Negro. Ele é negro, conhece e domina todas as categorias de feminismo: pós-colonial, liberal, marxista etc, mas na hora que uma mulher negra o critica por não aceitar que ele nos faça de objeto de estudo, da mesma forma que aconteceu com Saartije, ele se diz atacado. Esse mesmo homem feminista, sabedor das teorias, leitor voraz de Chimamanda Adichie e de outras mulheres negras, escreveu que o Feminismo Interseccional não existe enquanto ativismo. “É quase um deslize semântico!”, escreveu o pesquisador, que também enquadra a palavra “interseccional” na categoria “palavras da moda”. E depois da reação de blogueiras negras ele respondeu: “Estou aqui para dialogar”. Não se dialoga com ninguém que tenha como ponto de partida a invisibilidade de mulheres negras. Mulher negra como objeto de estudo, sem voz, sendo categorizada equivocadamente a partir de um olhar europeu, de um hábito eurocêntrico que a própria Chimamanda Adichie chama de “o perigo da história única”. Ler as mulheres negras intelectuais, não te transforma em feminista automaticamente. É preciso ir além.
E nos pedem diálogo. E se sentem atacados por nós. Vou repetir o que já escrevi em outro texto, dedicado a algumas feministas brancas: não fomos nós que estabelecemos a estrutura. Nós estamos rompendo com ela. Esse “ataque” sofrido pelos doutores quase me fez ouvir aquela voz branca em meio à multidão dizendo que racismo reverso existe.
Último exemplo é um homem branco cuja dúvida é/era sobre “qual a consequência social do machismo e do racismo?”. No âmbito do machismo, ele vê que as discussões são reduzidas à mera questão biológica, como se o homem fosse culpado de tudo. E diante disso, o moço “até se sente violentado”, afirmou diante da plateia. Esse perdeu a aula sobre “mulheres negras serem sempre as agressivas e as barraqueiras”, segundo alguma categoria analítica.
Queridos doutores, vocês querem diálogo? Então relativizem. Desçam de seus podiuns de notórios saberes e se curvem ao conhecimento acumulado pelas mulheres negras. Saibam da nossa história. Vocês são nossos aliados? Então nos respeitem e não passem à nossa frente. Querem contribuir com nossos estudos, estar nas ruas conosco e debatendo em meio a nós, então aprendam a ouvir sem categorias analíticas. E não esperem ganhar biscoitos por fazerem isso. Desconstruam-se. Nós somos uma pluralidade. Uma em cada tempo. Uma em cada necessidade. Uma em cada frente de batalha. Quando nos encontramos, ainda predominam o choro e o lamento, sim, mas ao invés de reclamar dele, guarde-os dentro de si e durmam lembrando como eles são doloridos.
EM MEMÓRIA DE SAARTIJE BAARTMAN
Lá se vão três séculos desde a morte de Saartije Baartman e da exploração de seu corpo e de sua intelectualidade pela ciência europeia. Avançamos. Atravessamos. Insubordinamos. Mas nossos corpos e nosso conhecimento ainda não são respeitados em sua plenitude dentro da Academia, e muitas vezes nem mesmo por aqueles que se dizem aliados e nos pedem diálogo ou aliança de pensamento.
Para Nilma Lino Gomes (2002), “é importante lembrar que a identidade construída pelo negro se dá não só por oposição ao branco mas, também, pela negociação, pelo conflito e pelo diálogo com este. As diferenças implicam processos de aproximação e distanciamento. Nesse jogo complexo,vamos aprendendo, aos poucos, que a diferença estabelece os contornos da nossa identidade”. Tomo a liberdade de usar as palavras da doutora Nilma e aqui fazer uma analogia quanto ao homem negro: temos uma diáspora como uma de nossas semelhanças, não somos opositoras de vocês em raça, temos sido fieis combativas ao lado de vocês, mas não ignorem nossos conflitos e nossas diferenças, pois nossas identidades de mulheres negras não estão para serem moldadas por ninguém, nem por vocês.
O FATO DE SERMOS DIFERENTES ENQUANTO SUJEITOS SOCIAIS TALVEZ SEJA UMA DAS NOSSAS MAIORES SEMELHANÇAS.
(Nilma Lino Gomes, 2002)
O Feminismo Interseccional enquanto ativismo existe tanto quanto existiu Saartije Baartman. É construído pela disposição à resistência que nossos negros corpos adquiriram ao longo de pelo menos um século (desde Sojourner Truth) enquanto ativismo político. Mas a Academia, como sempre, quer usurpar algo que é legítimo das ruas para chamar de seu conhecimento e se apropriar de novo de nossos corpos. A diferença, doutores, é que hoje não deixaremos que nos dissequem. Interessa-nos dialogar? Lógico que sim! Mas deem uma segurada. Como afirmei, nós estamos insubordinando o sistema e aos poucos dando outras formas a ele, formas que nos incluam, que nos libertem de sermos objetos. Mas não dialogaremos acatando o que diz este ou aquele homem, doutor ou não, que queira determinar como deve ser nossa existência e resistência. Porque no final das contas, vocês ficam com os belos textos e nós com os assédios.
E se for preciso apontar dedo na cara, nós faremos. Em nome de Saartije!
Referências
Adichie, Chimamanda Ngozi. O perigo de uma única história. Traduzido por Erika Barbosa (não localizei a data da tradução).
______, Sejamos todos feministas. Companhia das Letras, 2014.
Gomes, Nima Lino. Educação e identidade negra. UFRGS, 2002.