A face racista da miscigenação brasileira

A questão da miscigenação racial no Brasil costuma ser muito simplificada e romantizada. Não é raro ouvirmos que o Brasil é um país mestiço e plural e que, consequentemente, todos os seus habitantes tiveram sua etnia inevitavelmente misturada em algum ponto de sua ancestralidade. Mas sob o axioma de um país miscigenado se esconde uma realidade violenta e racista: a generalização da branquitude em um país predominantemente negro.

Se todos os brasileiros são miscigenados e possuem sangue negro e indígena em suas veias, por que tantas pessoas resistem em reconhecer a própria ascendência? Acontece que a identificação social da pessoa negra no Brasil acontece diretamente devido ao tom da pele. O entendimento das pessoas a respeito da negritude é muitas vezes distorcido: mesmo que a família direta ou os pais de um indivíduo sejam negros, o que pesa para que essa pessoa seja reconhecida como negra é a cor da sua pele. Mesmo o tom escuro não é garantia de que alguém será visto como negro; basta lembrar de quantas vezes são adotados eufemismos como “moreno” para se referir a pessoas com a cor da pele escura, como se a palavra pudesse de algum modo reduzir a carga negativa que o termo “negro” parece ter.

Embora a sociedade nem sempre valide a negritude alheia, as pessoas costumam reconhecer essa mesma negritude em traços e características físicas, que são constantemente transformados em justificativas para o racismo e a violência. O nariz largo, os lábios grossos ou o cabelo crespo, popularmente conhecido como “cabelo ruim”, são alvos de degradação e repúdio. É interessante lembrar que a África é um vasto continente com uma grande variedade de etnias, das quais não são todas que se encaixam no molde conhecido de “traços negros”. Ainda assim, são essas as características interpretadas como negras e que acabam por fermentar o racismo em suas mais diversas formas.

Mesmo com tantas histórias de violência racista, muitas pessoas ainda se sentem inseguras quando questionadas sobre sua negritude. Na última semana, foi aberto um formulário de pesquisa voltado para pessoas miscigenadas e as respostas obtidas foram bastante similares entre si. Algumas pessoas dizem que não se sentem no direito de se afirmar como negras devido ao tom não tão escuro da sua pele. Muitas delas são descendentes diretas de negros, ou contam com parentes próximos negros, mas a afirmação racial simplesmente não acontece. Por um lado, essa é uma demonstração de respeito às pessoas negras de pele inquestionavelmente escura, que sofrem o racismo diário impassível de debates ou especulações – o racismo contra a pele escura e contra a aparência. Por outro lado, uma discussão séria e sensível se faz necessária: por que tanta gente afrodescendente não reconhece a própria negritude e não consegue afirmá-la de forma política e subjetiva?

Para os brasileiros, é melhor ser branco sempre que for possível. Se a pele não é escura o suficiente, ou se um dos pais é loiro de olhos azuis, então a pessoa é considerada branca, em uma tentativa incansável de clarear os descendentes, a família e a nação. Da mistura de raças, nasce o branco por consideração e, com isso, morrem a cultura, a religião e a identidade afrodescendente. A negritude e a cultura africana, com seus símbolos e tradições, se tornam cada vez mais algo do  passado, de uma ancestralidade que é, na maioria esmagadora das vezes, totalmente desconhecida.

Mas os tópicos para debate não param por aí, pois não é o reconhecimento da identidade negra que fará uma pessoa ser negra. Mesmo que os seus pais ou os seus avós sejam negros, uma pessoa de pele branca e cabelo claro dificilmente sofre o racismo destinado às pessoas negras. É uma questão de bom senso: não há empatia em tomar uma afirmação política contra uma discriminação da qual você não é vítima. Resgatar suas raízes familiares, conhecê-las, celebrá-las e promovê-las é algo desejável e inspirador, mas é importante tomar cuidado para não banalizar a afirmação política negra e a sua luta. Há pessoas brancas, essas sem nenhum vínculo familiar negro, que são repletas de má fé e dizem que também são negras por causa da miscigenação brasileira. Mas esse argumento é uma farsa: em nosso país, negro é quem é reconhecido pelos outros como negro e, consequentemente, sofre racismo e discriminação social.

O racismo é um problema enraizado desde a formação do Brasil. Há séculos nosso país vem lutando para destruir as heranças culturais africanas e impedir a afirmação política negra de autorreconhecimento racial. Fazemos parte de um país que não tanto tempo atrás tinha abertamente uma política de branqueamento racial, incentivando a entrada de imigrantes brancos para clarear a cor do Brasil. A cultura brasileira deseja apagar o negro da sua história, sob a máscara pretenciosa da miscigenação. Mas a miscigenação também pode ser uma arma de luta e empoderamento: basta nos compreendermos como afrodescendentes, sem perdermos de vista o racismo que sofremos. Quando a face racista da sociedade se revela, não há quase-brancos, quase-negros ou morenos, mas sim pessoas nas quais a negritude foi reconhecida.

Por fim, esse texto sozinho jamais seria capaz de abordar todas as nuances e complexidade do tema. É preciso desbravar a miscigenação brasileira e promover a conscientização sobre o assunto. Que essa seja somente a nossa largada para a reflexão e a realização de novos debates e projetos.

 

24 comments
  1. Então eu que sou de uma família negra e tenho a pele clara posso me declarar negra? Tendo a noção de que não sofro o racismo como meus familiares

  2. Passo por uma situação diferente, querem que eu reconheça um ascendência que não tenho. Sempre escuto frases como ”Olha a sua cor! Você tem o pé na senzala sim” ou então “Passou das seis da tarde é noite”, além de serem altamente racistas acabam perpetuando o mito de que existe um tom de pele divisor de águas: a partir daquela cor você se torna negrx e antes você é brancx, mesmo que tenha ascendência negra direta. A questão é que eu não tenho ascendência negra, mas sim indígena! Os meus traços são indígenas e ibéricos. Aí entra o grande dilema, do mesmo jeito que nem toda pessoa com olhos amendoados é japonesa, nem toda pessoa com a pele “mais escura” é negra, além do fato do termo negro ser muito raso para a enorme diversidade étnica africana. É difícil reconhecer-se com de origem de povos que foram exterminados e catequizados, apesar das pesquisas que faço não consigo encontrar as tribos que me reconectariam à minha ancestralidade, queria conhecer a cultura, queria conhecer um pouco do que há em mim. A pergunta que fica é: como transcender a minha real ancestralidade sem que pareça que estou fugindo de raízes africanas e sendo racista? Pergunto porque muita gente prefere esconder as origens africanas, o que não é o meu caso. Obrigada 🙂

  3. Muito bom o texto! Você acha que uma pessoa que é branca, reconhecida como branca, mas cujos ancestrais são negros, pratica apropriação cultural ao abraçar a cultura afrodescendente e adotá-la como sua? Gostaria muito mesmo de ouvir sua opinião!

  4. Cheguei muito atrasado na conversa, me desculpem.
    Texto muito interessante mas acredito que faltou a visão dos mestiços que se reconhecem como negros.
    Infelizmente, essa parcela, onde me incluo, não é reconhecida pelos negros como negros e pelos brancos como brancos. Como foi dito no texto somos os “morenos”.
    Acho que seria interessante observar esse prisma do racismo que parte dos negros de pele mais preta que a minha e que nos exclui, assim como os brancos já o fazem naturalmente.
    Minha esposa mesmo, mulher negra, não poucas vezes me ofende com termos como “cor de cocô” ou “cor de burro quando foge”. Talvez isso se explique pelo histórico escravista e racista de nosso país que separa demais as etnias ou o fato de os mestiços brasileiros terem aparecido depois, pois primeiro vieram os negros africanos e brancos europeus, não sei…
    De certo que os únicos que me reconhecem como negro são os policiais que, vez ou outra, me abordam na rua para me revistar.

  5. Também adorei o texto, mas a questão de identidade é mesmo muito complexa. Recentemente, uma amiga minha aqui dos EUA, filha de um americano com uma brasileira e eu conversamos sobre isso. Para ela, que nasceu aqui e nunca tinha passado mais do que algumas semanas no Brasil, ela era tao brasileira quanto americana. Finalmente agora ela pôde passar mais de oito meses no Brasil e estava muito frustrada porque os brasileiros não aceitavam que ela era brasileira…Não cabe aqui a mim questionar a posição dela. Da minha parte, também relutaria em ve-la como brasileira, porque isso, para mim, implicaria em uma série de familiar idades e experiências culturais que lhe faltam. Porém, na perspectiva dela, fazia todo o sentido, porque, segundo ela, identidade seria mesmo uma questão de identificar-se com algo. É mesmo muito sutil.

  6. gostei do texto, exceto por essa parte, não sei se interpretei errado, porque o texto em geral é bastante inteligente e essa afirmação que destaquei é de dar pena.

    “Mesmo que os seus pais ou os seus avós sejam negros, uma pessoa de pele branca e cabelo claro dificilmente sofre o racismo destinado às pessoas negras. É uma questão de bom senso: não há empatia em tomar uma afirmação política contra uma discriminação da qual você não é vítima”

  7. Exacatamente devido à História brasileira tinha ideia que o racismo não seria tão forte e evidente aí, achei chocante, ainda mais com os comentários.
    Eu considero a mistura das raças linda e rica. Mas será que porque nunca senti na pele o racismo, estou a falar sem conhecimento de causa?!
    Acho sobretudo triste, que as pessoas, no secXXI ainda não se aceitem, nem aceitem os outros.

  8. Me chamo Aline Souza, tenho 20 anos e sou negra. Estive esses dias no Rio e entrei no Banana Tropical pra fazer um lanche rápido. Fui tratada com grosseria, duma forma que nunca havia sedo tratada antes. O gerente me perguntou quem tinha me deixado entrar no estabelecimento e que estava ali pra manter a ordem e eu estava bagunçando. Não me deixou sentar e muitos menos falar. Os funcionários, também negros, ficaram olhando e perguntando um outro o que eu tinha falado com ele e porque me tratava daquela forma. Os clientes que se encontravam lá todos me olhavam pra aquela situaçao e também não entendiam pois mal eu tinha entrado no local e já tinha gerado bagunça. Sai de lá chorando pelas ruas. Nunca havia passado constrangimento do tipo.

  9. Oi tudo bem? Bom, eu concordo plenamente com vc em todos os pontos menos com esse:

    “É uma questão de bom senso: não há empatia em tomar uma afirmação política contra uma discriminação da qual você não é vítima. Resgatar suas raízes familiares, conhecê-las, celebrá-las e promovê-las é algo desejável e inspirador, mas é importante tomar cuidado para não banalizar a afirmação política negra e a sua luta. Há pessoas brancas, essas sem nenhum vínculo familiar negro, que são repletas de má fé e dizem que também são negras por causa da miscigenação brasileira. Mas esse argumento é uma farsa: em nosso país, negro é quem é reconhecido pelos outros como negro e, consequentemente, sofre racismo e discriminação social.”

    Um exemplo, muitas vezes vc não pode celebrar suas raízes, quando elas ainda estão em um solo de pedra. Acredito que nos estados unidos por exemplo, uma pessoa que se considera negra mesmo loira, é uma postura política de jogada. PORQUE ninguém é NEGRO, ou INDIO. deram esse nome, os próprios colonizadores. Nós temos identidade independente de rótulos baseados no biológico. Muitas vezes, uma pessoa “branca” sofre o mesmo preconceito em alguns momentos. Um exemplo sou eu. as pessoas me perguntam se sou japonesa, e não, minha avó era indÍgena, javaé karajá. Mas a minha mãe foi trabalhar pra uma mulher branca, a agregação, mascarada como adoção. Na “família adotiva” já sofri todos os tipos de humilhações. fora a diferença enorme de igualdade financeira entre a gente, a minha mãe ainda trabalha pra eles. É isso não acredito em nenhum nome colonizador. como um aueb tab me disse um dia: EU NÃO SOU XAVANTE, NÃO SOU INDIO NÃO SOU NADA. SOU AUEB TAB. SÓ nos definimos quando somos cobrados dessa identidade. e quem precisa de identidade política? o marginalizado. Mas se pensarmos bem, não penso só nos meus problemas. acredito que as pessoas podem de diversas maneiras tomarem essa postura, desde que seja de maneira construtiva. Um exemplo é, não só deve se manifestar pelo transporte, quem depende dele. um dia podemos ter filhos “negros”, ou quem sabe, uma identificação.

  10. Engraçado,mas passei a me considerar negra depois de um ficante me dispensar por não ser branca. Sou mulata,tenho a pele clara,mas já sofri racismo.
    Posso não sofrer como minha mãe, que devido a cor de pele,passou por coisa muito pior. Mas sim,entendo o sofrimento e o sabor da rejeição.E digo do fundo do coração: dói.

  11. Tenho uma descendencia negra, branca e libanesa e minha familia celebra intensamente a parte libanesa e branca, mas tenta apagar a negra dizendo que meu avo, um afro-brasileiro, era moreninho. Na tentativa de resgatar a identidade negra da familia, fico sempre em conflito justamente por causa do que esse texto explica: “não é o reconhecimento da identidade negra que fará uma pessoa ser negra. Mesmo que os seus pais ou os seus avós sejam negros, uma pessoa de pele branca e cabelo claro dificilmente sofre o racismo destinado às negras. não há empatia em tomar uma afirmação política contra uma discriminação da qual você não é vítima”

    Hoje moro nos EUA e a regra do one drop of blood me faz indiscutivelmente negra, alem de latina, eh claro. Mas como resgatar essa identidade no brasil? Como nao me revoltar com meu pai sempre dizendo isso e aquilo por causa do nosso sangue libanes e nada do sangue negro? Seria bom saber a opiniao de voces sobre isso. Não quero ser condescente e nem banalizar a afirmacao politica negra, mas me sinto negra, embora na minha cidade natal nao seja tratada como tal.

  12. Oi, jarid! gostei muito do seu texto e respondi o questionário que você colocou no twitter. a questão de nunca ter sofrido racismo por não ter a pele negra pesa muito na forma como eu me identifico. é tipo “eu tenho direito de me considerar negra se ninguém me considera?” mesmo o meu pai sendo negro, eu tenho pele clara. além disso, por ser baiana, a cultura negra é muito presente na minha vida e eu quero me identificar como negra *também* mas não sei como fazer isso sem parecer hipócrita.

    bjs

  13. O texto é de grande relevância nos âmbitos educacionais, religiosos, políticos e familiares. Sabendo-se que a negação da identidade brasileira no que tange a negritude ainda é muito forte em nossa cultura. Penso que pessoas que negam a sua origem é porque não estudaram o suficiente para entender a formação étnico cultural da sociedade brasileira para só assim disseminar esse conhecimento principalmente nos âmbitos acima citados.

  14. Texto com pontos excelentes, Jarid!
    Pra mim, a reflexão que fica é a do apagamento: do jeito que foi o processo de miscigenação brasileiro onde o intuito sempre foi apagar as características dos outros povos, apagar memória, história e identidade continua sendo mecanismo de racismo e miscigenação forçada.

  15. Gostei muito do seu texto! Uma sugestao que eu gostaria de deixar é sobre a miscigenacao cultural que está nas bases da sociedade brasileira. Ao contrário do que muitos pregam, a base nossa misigenacao nao é produto da convivencia entre pretos, brancos e nativos e sim fruto do ESTUPRO SISTEMÁTICO cometido pelos brancos contra as mulheres pretas e as mulheres nativas, sendo os primeiros mestiços brasileiros frutos da violencia.

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