Quero falar sobre as solidões e abandonos vividos em tempos de livre trânsito pela cidade, abandonos e solidões cotidianos antes da pandemia se instalar, mas invisibilizados por quem somos, de onde viemos.
Muitas pessoas foram forçadas pelo momento a estarem sós, não apenas da sociedade e das ruas, mas daqueles que você sempre explorou nos detalhes do dia a dia, da rotina. Como a empregada que fazia seu café da manhã, o lanche dos seus filhos pra escola, o passeio com o cachorro, que limpava e lavava a casa toda. Forrava até sua cama. Aquele porteiro que subia suas compras, correspondências e entregas até sua porta. Ou daquele menino que você explorava para ir até a boca de fumo buscar sua maconha.
Estou falando da solidão dos privilégios, de estar em seu apartamento de muitos metros quadrados, com piscina, jardim, varanda. Da solidão de não estar acostumado a fazer a sua comida. Todos os dias as pessoas brancas privilegiadas, que estão com direito a fazer home office, sentem o isolamento e, pela primeira vez em muitos anos, vivem a solidão de não ter ninguém para o servir.
Já na vida daquelas em que a solidão sempre foi uma constante, mesmo em meio à multidão, o isolamento social tem causado dores de se ver paralisada frente a família inteira em casa, a falta de trabalho, de renda, de comida, da possibilidade de ganhar a vida matando o leão por dia. São as mulheres que lidam com as solidões diárias dos abandonos emocionais e sociais, ainda mais agora nesse contexto de pandemia.
Nós mulheres negras já lidamos há muito com solidões e abandonos, que não estão apenas ligados a questões emocionais, como romantizam parte de nossa história de solidão, mas também estão ligadas a abandonos políticos, profissionais, sociais e humanos. Muitas de nós começam a sentir o corpo descartado, o corpo que vale menos, o corpo que não pode fazer home office, que não consegue acessar a seguridade social, o teto.
Nesse momento, o que se consolida é a face do abandono social, de como a histórica desigualdade para as mulheres negras sempre nos exigiu fazer mais para sobreviver. Ser melhor na escola, no trabalho, nas relações amorosas. O abandono social promovido pelo Estado nesse momento aponta quem são os corpos que estão na base da estrutura da sociedade que podem ser perdidos. É a falta de água para lavar as mãos, a casa com 2 cômodos.
É fato que a pandemia não escolhe suas vítimas por raça ou sexo. Os primeiros casos confirmados foram na classe média e rica, cenário que tem mudado com o ponto alto da curva da contaminação. É nesse momento que a vulnerabilidade social será gatilho para a morte quando a doença avançar sobre as comunidades e bairros de periferia. Os óbitos serão uma questão social e racial na política econômica que se apoia na vida dos mais vulneráveis para garantir o bem-estar da classe média branca que não aguenta mais a solidão de não ter ninguém para servi-los.
Imagem destacada – Pixabay