Inicio esse texto me indagando: afinal quem sou eu para falar sobre aborto? Se nunca abortei, se nunca passei pela situação de desespero da decisão de parar ou seguir em frente numa gravidez não planejada? Ora, sou feminista, defendo o direito ao corpo e que todas as decisões caibam à mulher, mas nunca precisei decidir sobre isso. Será que conhecer histórias e ter ouvido relatos de quem passou por isso são suficientes para eu poder colocar no papel impressões, suficientemente, reais sobre esse tema?
Uma coisa que me parece comum quando leio sobre aborto é que as mulheres nunca tem nome, a não ser quando são vítimas fatais das intervenções feitas de forma clandestina. E elas não têm nome porque não se pode falar sobre o ato praticado, por que são consideradas criminosas, porque essas mulheres tem medo. E mesmo quando são vitimadas e suas vidas tiradas ainda assim são criminalizadas.
Mulheres que fizeram aborto não escrevem textos falando das suas experiências, elas dão entrevistas sem serem identificadas, compartilham suas vivências com pessoas muito próximas e, muitas vezes, nem o companheiro fica sabendo do acontecido, são números estatísticos e dados catalogados dos institutos de pesquisa e saúde. O que temos como cenário de um país onde o aborto é considerado crime é o silêncio.
E nós sabemos que o silêncio sobre determinados temas é uma prática recorrente na sociedade brasileira. “Não tocar no assunto para assim ele desaparecer”, mas eles não irão desaparecer muito pelo contrário, os números crescem rapidamente, escancarando nossas desigualdades e a segregação social.
Escrever sobre aborto no meu caso é um pouco de tudo isso, mas é também uma tentativa de dar voz a essas mulheres que são reais, que estão tão perto de mim que posso tocá-las, ouvi-las e que, por várias vezes, me viram como confidente ou como uma ajuda para a tomada de decisão:
Relato 1:
Amiga, preciso de ajuda sabe onde consigo comprar aquele comprimido para “dor de barriga”? Não sei o que fazer, nem a quem recorrer e sei que você não irá me condenar sem antes me ouvir!
Relato 2:
Disse pra ele que estou grávida e ele disse para eu tirar, pois já tem uma filha de outro relacionamento e não vai ficar colecionando pensão! Preciso tirar e não tenho ideia de como fazer isso.
Relato 3:
Já está tudo decidido, marcado e já consegui todo o dinheiro, mas não quero ir sozinha. Tenho medo de acontecer alguma coisa e não conseguir sair de lá, você pode me acompanhar?Ele não vai, disse que não pode sair do trabalho nesse horário.
O que descrevi aqui são situações reais, nada muito diferentes daquelas que muitas de nós já não ouviu ou leu em artigos a respeito, o que quero apontar é que o papel que a gente faz como ouvinte, confidente, conselheira deveria ser do Estado se o aborto fosse descriminalizado.
O fato de a maioria das mulheres estarem sozinhas diante de uma tomada de decisão que irá modificar muita coisa em suas vidas, (sim porque a situação não se encerra com o ato, vem à consciência que fala, a culpa, o medo a formação religiosa e não raro, crises emocionais e depressão), a meu ver torna a decisão muito mais sofrida e, muitas vezes, sem possibilidades de se encontrar outra saída.
Falar sobre aborto é muito mais que falar do direito ao corpo, é buscar dialogar com uma parcela da sociedade que tapa os olhos para aquilo que acontece muito próximo a todos nós, mas que não é dito, não é comentado, que é, hipocritamente, silenciado.
Certa vez me perguntaram se ao ser favorável ao aborto eu não pensava no feto. A resposta é tão evidente quando a gente lê e analisa a realidade sobre abortos no Brasil que essa pergunta não seria feita por a resposta ser tão nítida: se todos pensassem de fato na criança que vai ser gerada o aborto já seria legalizado há muito tempo, pois é só garantindo a segurança, a saúde emocional e física da mulher que haverá garantias que esse filho nascerá num ambiente saudável e sem mágoas.
Com a mulher sentindo-se protegida, acolhida, segura, tendo profissionais para ouvi-la sem ser condenada, sendo auxiliada e direcionada da melhor forma, para que não se sinta uma criminosa e perceba que há outras possibilidades de lidar com a situação, ela se torna livre para decidir pelo que for melhor, inclusive para levar a gravidez adiante.
Ser a favor da legalização do aborto não é, necessariamente, concordar que ele seja feito de forma indistinta. É, antes de tudo, dar suporte à mulher para que numa situação de total desamparo, ela não enxergue nessa sua única alternativa. Quando a sociedade encerra a discussão sobre aborto no nível criminal, desconsidera todo um contexto social que envolve as mulheres que decidem pela prática. Além de silenciar sobre as inúmeras consequências que uma intervenção não assistida pode gerar tanto para a mulher quanto a todos que a cercam.
Silenciando ou criminalizando o fato é que os abortos continuam sendo feitos no Brasil. E o que não pode mais permanecer vigorando é a hipocrisia de achar que cabem apenas as mulheres a responsabilidades sobre as consequências de uma ação que poderia ter sua violência atenuada se a sociedade admitisse que o problema é social e não individual.
Imagem de destaque – reprodução Cress-sc