Acompanhei recentemente uma reportagem que dizia que a cada cem negras trabalhadoras vinte duas eram empregadas domésticas, com isso, concluí que essa profissão perpassa as mulheres negras com muito mais freqüência que qualquer outra profissão e obviamente esse fato acontece por causa do encargo social que acompanha a raça negra desde que o primeiro navio negreiro desembarcou no Brasil por volta de 1563. Mas também vão junto, além disso, questões fortes de gênero que incitam para que se dê repetidamente a ocorrência desse ofício entre as mulheres, questões como a explicitada nesta frase machista que está completamente naturalizada em nossa cultura: “Lugar de mulher é na cozinha”.
Percebi o quanto é difícil encontrar mulheres negras que não sejam domésticas ou, ao menos, filhas, netas, sobrinhas e irmãs de domésticas. De certo modo comprovamos que está cravado em nossa história que ser uma empregada doméstica é a única profissão que devemos seguir e que em apenas raras exceções não a seguiremos. A relação da mulher negra com o trabalho doméstico não acontece em uma forma de escolha, mas sim de coação, até mesmo de obrigação por muitas vezes. Por mais que pareça muito claro acredito que muitos não saibam qual é o grande problema que traz essa situação.
Em 1850, há exatos 38 anos antes da abolição, foi criada no Brasil uma lei chamada Lei de Terras, essa foi a primeira lei agrária do Brasil e tinha um motivo camuflado, que quase nunca é apresentado ao conhecimento do senso comum, o tal motivo era o de impedir que negros tivessem terras propriamente deles. Por causa disso por “coincidência” a Lei de Terras foi aprovada no mesmo ano da lei Eusébio de Queirós, que presumia o fim do tráfico negreiro e sinalizava que estava por perto a abolição da escravatura no Brasil. A terra se transformava a partir daí em uma mercadoria, só conseguiria ser propriedade de alguém se fosse recebida como herança ou comprada, logo por não ter dinheiro nem empregos bem remunerados após a abolição os negros foram jogados na periferia da cidade por isso hoje em dia existe uma porcentagem esmagadora de negros vivendo nas favelas brasileiras.
Ok, mas onde quero chegar com esses dados? É uma simples matemática feita da soma de dolorosas e falsas coincidências. Após o fim da escravidão, sem terras, sem educação e sem qualquer experiência profissional além de trabalho escravo, o negro se viu anulado de conseguir qualquer emprego além do que já fazia antes sem ganhar nenhuma remuneração. Se ele trabalhava antes de graça, por que agora dariam algum valor justo para o seu trabalho? Algumas das profissões destinadas ao negro eram: carregador de caixas, cozinheiro, copeiro, lavadeira, mucama/criado, carregador de cestos, padeiro, forneiro, carpinteiro, ama de leite, ajudante de cozinha, lavador de pratos e etc. Já que disputava os empregos com um grande número de imigrantes, sobravam sempre os serviços com as piores remunerações. Para a mulher negra continua sendo o de criada, que hoje apenas só mudou de nome.
Constatamos que a profissão doméstica é uma das mais negligenciadas e isso é um resultado claro do histórico escravista, ou melhor é visivelmente uma extensão da escravidão só que disfarçada. Afirmo isso por causa da falta de direitos trabalhistas, das longas e árduas horas de trabalho para um salário indigno que faz com que elas façam diversas diárias no mesmo dia para terem chance de pagar as contas. Quando mãe de família a mulher tem que abandonar seus filhos em casa para cuidar dos filhos de outras mulheres. O filme The Help (Histórias cruzadas) apresenta bem essa relação. Lembro da cena em que uma das mulheres leva a sua filha adolescente até a parada de ônibus para seu primeiro dia de trabalho como doméstica, as duas de uniforme, a mãe estava desempregada e por um empecilho não podia trabalhar, como sendo a mais velha das filhas a menina assumiria a função passada de geração por geração, sem ter nem o direito de escolha. Se tratava da profissão que era dada e deveria ser desempenhada, porque isso era natural e, de acordo com os dados atuais, ainda é.
Eu, mulher negra filha de uma mãe negra e trabalhadora doméstica me senti profundamente atingida por esse estereotipo profissional, mesmo não comprovando ele na prática. Dentro de onde cresci sempre fui coagida pelos meus pais a ter um futuro diferente do que eles tiveram, a estudar, ter um emprego que me fizesse feliz, dentre outras coisas que todos os pais desejam para os seus filhos. Mas mesmo assim, passando por escolas públicas precárias e um ensino ruim, sempre dentro de mim ficava aquele receio de um dia não conseguir o que eu sonhava e aceitar o destino que me era dado e colocado desde o meu nascimento aos meus pés. Acredito que essa situação com certeza não é apenas minha, mulheres negras passam por isso todos os dias o que o torna um dilema geral.
Nosso esforço para chegar a uma faculdade ou carreira de sucesso é duplamente difícil, porque no fim nossos caminhos sempre nos levam a crer que o nosso destino era o de nossas avós, tias, amigas de escola, mães, irmãs, destino que está na televisão, onde a mulher negra só aparece como empregada nos comerciais, filmes e novelas. Não quero por nenhum segundo aqui desmerecer essa profissão, porque tenho um orgulho imenso da minha mãe, ela se virava em mais de dez mulheres para criar eu e meus 4 irmãos, trabalhou desde os 7 anos de idade abafando dentro de seu peito o desejo de estudar e ser professora. O que é explicito aqui é o jeito que a profissão doméstica nos é dada e não escolhida por nós, quantas meninas não abafam sonhos todos os dias porque precisam trabalhar em casas de madame com direitos precários?
Essa profissão carregou até pouco tempo total falta de direitos trabalhistas, até que algo mudou, quando neste ano foi aprovada pelo Congresso Nacional a PEC das domésticas. Essa PEC é responsabilizada pela regularização do direito dos trabalhadores domésticos, entre eles, a remuneração igual ou superior a um salário mínimo, décimo terceiro salário, folga semanal remunerada, férias, licença-maternidade e paternidade e aposentadoria. Direitos que todo o trabalhador deve ter e só foram conquistados agora, ainda existem umas lacunas no projeto que não foram conferidas perfeitamente, mas a PEC é um avanço, todavia não deve parar por aí. Creuza Maria Oliveira mulher, negra e a frente da Federação Nacional dos Trabalhadores Domésticos (Fenatrad) em um de seus relatos afirma que se a PEC existisse antes ela não teria sofrido tanto, esse mesmo pensamento minha mãe carrega nos seus 63 anos.
Ambas têm uma história muito parecida, ambas começaram a trabalhar na infância e tem quase 30 anos de trabalho doméstico na história. Acredito ao mesmo tempo, se você for negra, que a sua mãe, irmã, tia, sobrinha, amiga, também tenham experiências ou estejam vivenciando situações semelhantes a essa. As chances de você também estar vivendo isso são igualmente grandes, nossa história foi construída com base no trabalho doméstico por isso não é estranho que essa seja uma das profissões menos valorizadas do Brasil, pelo contrário isso é apenas o que se espera.
Bibliografia
PEIXOTO, Ricardo Corrêa. Mucamas, Criadas ou Domésticas: sinônimos de uma história de exclusão. Disponível em:(http://www.brasilescola.com/sociologia/mucamas-criadas-ou-domesticas.htm).