Desconfiem de quem se afirma decolonial, mas não rompe com o epistemicídio!

O que é visto no Brasil são pessoas brancas mobilizando a decolonialidade, mas mantendo feridas epistêmicas abertas.

Em um momento de emergência do projeto decolonial no Brasil, é preciso pautar o rigor e a ética intelectual. Esse movimento é importante frente constantes tentativas de esvaziar o que significa fazer a opção decolonial. Na minha leitura, é preciso desconfiar de quem articula – e posiciono aqui as redes sociais – conceitos e projetos políticos, epistemológicos, éticos, estéticos e cosmológicos de uma maneira incipiente. 

Comecei a estudar sobre decolonialidade em 2016, 2 semestres depois da minha entrada na Pedagogia/UFPE, diante de uma questão que, para mim, foi basilar: o que difere o pós-colonial do decolonial? Viviane Vergueiro havia me apresentado o pensamento decolonial em sua dissertação de mestrado e me senti interessada. Principalmente, devido ao fato de até aquele momento, Viviane era a transfeminista que, na minha opinião, mais referenciava o pensamento de intelectuais negra/os em suas elaborações transfeministas. Quando Viviane utilizou o pensamento decolonial como fundamento teórico para suas perspectivas transfeministas, me senti instigada de ler o que, até então, era completamente novo para mim. 

Li muito entre 2016-2019, imprimi 14 mil apostilas na fila da xerox do CFCH-UFPE contendo artigos, ensaios, capítulos de livros e transcrições de fala. Foi um processo importante de compreensão teórica. Aprendi com a Prof Doutora Maria Eliete Santiago que é preciso construir uma disciplina intelectual para evitar o esvaziamento de teorias que são parte das lutas por libertação. Nessa trajetória, alguns incômodos surgiram no caminho. 

Ainda que o pensamento decolonial elenque como um dos seus pontos centrais, o rompimento com o silenciamento impostos às inteligências, expertises e epistemologias de pessoas racializadas, o que é visto no Brasil são pessoas brancas mobilizando a decolonialidade, mas mantendo feridas epistêmicas abertas

Foi a partir desta inquietação que repensei bastante sobre o que a decolonialidade representava para mim enquanto uma travesti negra do Brasil. Precisei fazer o giro antirracista no interior da teoria decolonial. 

Esse movimento me permitiu ler sobre a “perspectiva negra decolonial brasileira” da Prof Doutora Nilma Lino Gomes e a respeito dos “deslocamentos e insurgências intelectuais” da Prof Doutora Claudia Miranda. Lélia Gonzalez, nossa grande mestra, já falava sobre “superioridade euro-cristã” em 1988, em sua categoria político-cultural de amefricanidade. No entanto, as pessoas brancas interessadas em discutir sobre decolonialidade no Brasil, continuam a perpetuar o ocultamento da contribuição das/os pensadoras/es negras/os brasileiras/os. 

Os estudos desenvolvidos por Lélia, Adbias do Nascimento, Sueli Carneiro, Petronilha Gonçalves, já posicionavam há décadas que é preciso pensar desde um outro lugar, ainda que as tentativas constantes sejam as de nos posicionar como Não-Ser. 

Meu primeiro artigo científico publicado, chamado “O currículo frente à insurgência decolonial: constituindo outros lugares de fala”, partiu do reconhecimento de que somos sujeitos produtores de saber. Que nossas intelectualidades negras insurgentes, como coloca bell hooks, apresentam novos horizontes emancipatórios. 

É preciso estar atenta, é preciso desconfiar! Decolonialidade é, também, sobre o silenciamento histórico imposto. É sobre estilhaçar a máscara-de-flandres, assim como Yhuri Cruz fez em seu “Monumento à Anastácia“. 

Estamos de olho em quem desconsidera o “Lugar de Fala” de Djamila Ribeiro, mas reafirma o lócus de enunciação branco-ocidental. 

Desconfiem de quem se afirma decolonial, mas não rompe com o epistemicídio!

Imagem: “O sétimo caminho da encruzilhada é o equilíbrio” de Castiel Vitorino Brasileiro. Na obra Castiel discute sobre a encruzilhada – ou o encruzilhamento – como epistemologia. A artista utiliza Exú como bussola ética na criação de outras relações com nossas vidas que perambulam para direções contrárias àquelas previstas, orientada e autorizada pela colonialidade. Para além disso, Castiel também propõe seu corpo e sua existência como território de enunciações não apenas das identidades que me compõe, mas também dessa força de transmutação que é Exú.

Castiel Vitorino Brasileiro é artista visual, macumbeira e psicóloga formada em Universidade Federal do Espirito Santo/UFES em 2019/2. Atualmente é mestranda  no programa de Psicologia Clínica da PUC-SP.

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