Afirmei por longos anos que nunca fui vítima de racismo, porém a luz do conhecimento me permitiu a questionar essa certeza e então fui buscar dentro da minha história a verdade dos fatos. Sou de família pobre, mas meus pais sempre buscaram me dar uma boa educação em detrimento de seus próprios anseios. Estudei em boas escolas públicas e com 14 anos ingressei na rede privada de ensino.
Meu pai sempre me protegeu das falácias do mundo e não foi diferente quando o assunto se referia à cor de pele, me dizia que o preconceito era bobagem e que não existia. Pois bem, me fez acreditar nisso para que eu não sofresse o que ele sofria em seus trabalhos duros. Me fez crer que eu poderia passar por isso ilesa e como ele é a autoridade achei que devesse obedecê-lo e ignorar piadas, depreciações e afins.
E assim fiz ao ingressar na escola. À princípio na escola pública até existiam muitas pessoas iguais a mim, porém sofriam as mesma coisas que eu caladas. Estava aquém do padrão de beleza determinado, via os livros didáticos e nenhuma ilustração retratava a realidade em que vivia, muito pelo contrário, só me afastava da minha identidade e moldava os meus costumes e gostos a de pessoas que me fazia sentir insegurança em mim mesma.
Por isso hoje entendo por que meu cabelo devia estar sempre domado, minhas roupas sempre limpas e impecáveis e a fala da minha mãe constante frisando que não queria que seus filhos se vestissem “maltrapilhos”, para domesticar-me ao modelo em voga e não sofrer. Entre um “não usa isso”, “prende esse cabelo”, entendo hoje o seu medo de não me aceitarem. Adquiri manias que não eram minhas, fiz franja em cabelo crespo, passei giz colorido nas pálpebras por não ter maquiagem, pintei unha com canetinhas coloridas, brinquei com palhas por não ter bonecas e me conformei que isso era o que o “destino” reservou para mim.
Ao chegar ao Ensino Médio com 14 anos, meus pais fizeram um esforço de pagar uma escola privada mesmo sem poder. Lá sim, eu comecei a enxergar para além da venda dos meus olhos, passei por situações como “Você é bolsista?”, “É a filha da faxineira?” ou ver alguém colocar a mão em meu cabelo e limpar as mãos. Achei que a minha passividade era resistência. Nunca reclamei ou me fiz de vítima, hoje entendo que sobrevivi àqueles dias, contudo me inspiraram
Poderia ter acreditado o que me estava reservado após o término dos estudos como trabalhar para subexistir, mas acreditei que só a educação poderia salvar minha vida. Estudei mais um pouco fazendo pré-vestibular social e depois ingressei na Universidade para cursar Pedagogia, sem usar cotas por achar que eu deveria concorrer de igual para igual (eu considerava que poderia sofrer retaliações por ser cotista, já mudei minha opinião). E que meu pai sempre temia aconteceu, enxerguei as contradições da minha história. A cada aula assistida durante o curso, me revoltava ao saber que deveria ter reagido durante essa vida contra os meus algozes.
A Universidade me trouxe autonomia e confiança no que eu poderia ser, entrei em tensão por começar a desfazer uma imagem construída em 20 anos e ascender em uma identidade própria. Ainda estou na luta para reconhecer os meus direitos e as conquistas do meu povo, entender que existe uma história a ser honrada e com a minha formação posso contribuir para isso e a acreditar que somos, estamos e permaneceremos.
Lamento que tardiamente tenha me atentado a tudo isso, não culpo a minha família por ter tentado me proteger das desigualdades enraizadas em nossa história, pois eles tiveram o seu direito ao conhecimento suprimido por estas. Só que hoje, enquanto mulher negra e pedagoga, vejo que posso fazer a diferença na vida de todo sujeito negro sem perspectiva. Provocando o que existe nas entrelinhas da sociedade e ajudando preservar a consciência negra ao produzir conhecimento em prol de nossa história. Reconhecer-se! Aceitar-se! Transformar-nos!
Imagem destacada: Jodie Smith, Lookbook January 2013