E se Claudia, não fosse mãe e nem trabalhadora?

“A polícia, matou um estudante, falou que era bandido, chamou de traficante. A justiça prendeu o pé – rapado, soltou o deputado e absolveu os PMs de vigário! … A polícia só existe pra manter você na lei, lei do silêncio, lei do mais fraco: ou aceita a ser um saco de pancada ou vai pro saco”. Gabriel O Pensador


Só agora, depois de um mês e alguns dias, que Claudia foi assassinada consigo escrever algo sobre esse crime. Durante esse um mês, fomos “bombardeadss” de notícias. Li todo tipo de texto, alguns sensacionalistas, religiosos, inconformados, raivosos, etc. O que mais me instigou a escrever esse texto foram esses rótulos heteronormativos e religiosos, em torno das notícias. “Morre Claudia, mãe de 4 filhos e trabalhadora”. Contorci-me ao ler esse rótulo. Ok. Ela era mãe, ela era trabalhadora, mas antes de tudo, ela era uma MULHER NEGRA. Não me senti em nenhum momento (nos textos que traziam consigo esse rótulo) representada. Várias perguntas me vieram imediatamente na cabeça.

E se ela não fosse mãe e nem trabalhadora? E se ela fosse lésbica, moradora de rua, dependente química, estudante, trans*, professora, dançarina, prostituta ou qualquer outra mulher negra, marginalizada e excluída, desse sistema racista, fascista e nada laico? Senti-me (e ainda me sinto) incomodada com isso. Sou estudante de uma rede pública, curso Arqueologia, que há muito tempo, é um curso que sofre discriminação, nos taxam de bêbadas, maconheiras, loucas, vadias, fedorentas. Dentro da profissão sofremos por sermos mulheres, imagina ser mulher negra. Sou uma mulher negra, viciada em cigarro, com um leve alcoolismo, tendo que lutar todos os dias, para ter voz dentro de uma ciência machista. Lendo essas notícias, me senti “merecedora” de ser arrastada na rua pela PM. Essa notícia, me fez pensar que, qualquer mulher negra, que não se encaixe nesse padrão hétero e religioso, seria passível a esse tipo de atrocidade.

Temos que dar voz para Claudia sim, mas uma voz que faça uma luta de todas as mulheres, de uma forma que todas se sintam representadas. Todas nós, fomos atingidas, fomos arrastadas, mesmo não sendo mães. Nossas lutas não podem calar ou não representar todas as outras mulheres negras, que não são mães, que não exerçam um trabalho remunerado. O cuidado que tenho para escrever esse texto é o mesmo cuidado que nós, militantes negras, devemos ter para representarmos a todas!

Todos os dias sofremos com um sistema machista, sofremos com o patriarcado impregnado em nossas famílias, trabalho, universidades, escolas e por onde quer que andemos. Lutaremos por Claudia, Alyne, Vera, Fernanda, Carolina, Maria, Antônia, lutaremos por prostitutas, vadias, arqueólogas, enfermeiras, faxineiras, desempregadas, estudantes, viciadas, lutaremos por todas as mulheres, lutaremos por tantas negras que todos os dias levantam, respiram fundo e tomam mais um fôlego para continuar sobrevivendo, para continuar sonhando, lutando e para continuar gritando bem forte, NÃO NOS CALAREMOS!

Não queremos respeito pelos nossos rótulos, profissões, estado civil e etc. Só queremos respeito!

6 comments
  1. Alyne, ser trabalhadora e mãe “alivia” pra qualquer mulher. Todas. Houve o caso de uma garota na minha cidade que foi brutalmente assassinada (testemunha do assassinato de seu namorado, que era negro e devia para traficantes) e era oriental e a midia não falou nada. Era modelo local e aspirante a carreira nacional. Num era mãe. Nem seu trabalho foi considerado.
    De novo, sororidade. A índia-branca para por aqui. vou pedir pra alguma amiga oriental escrever tb.

  2. Nisso tudo me identifiquei, negra, mas sempre amansada na persepectiva de ser “bem criada”, numa boa família e bem vista, imaginava como as outras negras se sentiam e eram tratadas, tenho mais direitos que elas, qual é a prerrogatia? quero ser vista como sou e não como os outros acreditam que quero me ver, “uma menina morena que é bonita demais pra ser negra”. Não… quero ser a negra o que sou e ter o valor que tennho. Que é o mesmo valor de qualquer outro ser humano branco, amarelo vermelho, preto ou cor de rosa.

  3. Alyne (minha pretinha amada),
    obrigada por compartilhar conosco essa reflexão rica e sensível as questões marginalizadas que ainda hoje, mesmo dentro de espaços de militância, se tornam necessárias ser lembrada, que é a de que devemos ser respeitadas, independentes de sermos universitárias ou não, trabalhadoras ou não, mães ou não. Obrigada pela leitura sensível que fizestes.
    Amo-te!
    Mari Pimentel

  4. Aline, isso me incomoda demais! Essas classificações de pessoas de bem e o resto, é uma tremenda jogada da mídia, para bitolar ainda mais as pessoas.

  5. Alyne,

    minha xará, eu estava esperando por esse texto. Sempre me incomodou essa justificação para a morte de uns e para o direito de viver de outros. Esses pequenos “detalhes” nos discursos diários sobre a violência têm um poder horrendo sobre o cotidiano daqueles que há quase 500 não são cidadãos nesse país.
    Beijos,

    Aline Djokic

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