A vontade de entrevistar Yasmin Thayná – diretora e roteirista do curta-metragem Kbela – já estava nos planos do BN desde Janeiro. A oportunidade veio no II Diálogo Nacional Sobre Violência Doméstica, promovido pelo Fundo Fale Sem Medo, resultado da parceria entre o Instituto Avon e o ELAS Fundo de Investimento Social. No segundo dia de encontro, Thayná compartilhou sua experiência na Oficina de Comunicação: Mulheres nas Telas e em foco, representatividade e não-violência.
Algumas perguntas, já elaboradas em Janeiro, foram respondidas nessa Oficina, e uma delas era se Kbela era um filme declaradamente/explicitamente feminista. Falando sobre a finalidade do curta-metragem, Yasmin disse que Kbela era um filme sobre mulheres negras, sobre ser mulher, tornar-se negra (70% das mulheres que envolvidas no projeto são negas), e que procurou criar outras narrativas das mulheres negras que não fosse só aquela de violência, mas da dança, da alegria, da transição, do transcender. Dessa forma, Kbela foi o momento de se juntar mulheres em áreas técnicas, inclusive, como fotografia, direção de arte, produção, direção e roteiro, também para desmistificar esse lugar de que não existiam mulheres negras cineastas.
A seguir, o que era pra ser uma entrevista, mas se transformou numa aula sobre negritude, com Yasmin Thayná. Obrigada, Yasmin. Obrigada pelo conhecimento compartilhado, obrigada pelo carinho e disponibilidade, obrigada por Kbela. Adupè!
Gabi Porfírio: Em que Kbela se relaciona com o tema “desconstrução”?
Yasmin Thayná: Então, o Kbela atua na questão da desconstrução em dois sentidos. Primeiro da representação e a outra da representatividade. Representatividade no sentido de quem faz e de quem também está sendo visto ou representado. Então desconstruir nesse sentido de a gente ter o domínio da nossa própria história e de que ferramentas a gente vai usar, como, onde e porquê.
Então, por exemplo, tem uma questão muito legal pra citar sobre isso: a Zua (Isabel Martins Zua Mutange) tem uma cena de nudez no filme. Mas é uma cena coletiva e aí tem uma mulher trans negra (Maria Clara Araújo) e outras três mulheres cis. A Zua não é trans, é uma mulher cis portuguesa e ela já é atriz, já faz outras coisas e ela sempre fica muito incomodada com cena de nudez, porque o cinema muitas vezes se usa da nudez como uma forma gratuita. Ela ficou um pouco incomodada sim na questão da nudez naquele momento, mas ao mesmo tempo ela notou que estava numa nudez tirando um branco do corpo, empretecendo as outras, então ela viu que aquilo ali, aquela nudez era desconstruída. Então acho que nesses dois sentidos eu penso no Kbela. e também na distribuição. E aí eu acho que não só o Kbela, mas o movimento de mulheres negras no cinema. Adélia Sampaio, que é a mais velha, foi a primeira mulher negra a dirigir um longa metragem no Brasil. Larissa, Thamires, Juliana Vicente que hoje, assim: ela atua, é tá dentro do mercado audiovisual já tem um tempo, foi pra Cannes, ganhou Cannes, enfim… Tá sempre nos festivais de cinema.
Então são histórias de desconstrução, porque as nossas narrativas não são padrões. Você botar uma mulher negra com tom de pele escura, com cabelo crespo não é um padrão!
Na moda, por exemplo tem uma exploração da mulher negra escura, mas a mulher negra careca, nunca a mulher negra de black ou de trança ou de dread porque não é o padrão. Então dentro dos padrões que existem, existem um milhão de padrões que se encaixam naquelas gavetas, então a gente precisa (assim como o sotaque baiano não é uma coisa que a gente costuma ouvir muito no cinema) ver negros! Principalmente porque a gente vive num país em que 55% da população é negra. Angela Davis chega aqui no Brasil, no [ Latinidades [Festival da Mulher Afro Latina e Caribenha] e diz o seguinte: eu venho aqui no Brasil, olho a televisão e parece que é um país branco. Não tem representação, eu ligo a televisão e não vejo as pessoas. Então a gente precisa fomentar, criar, produzir em grande escala essas narrativas porque diretamente elas vão estar ligadas a essa desconstrução da indústria e da comunicação que deve ser mais democrática.
GP: Como a narrativa de Kbela se diferencia da narrativa de outros longas e curtas-metragens que tratam da imagem da mulher negra?YT: O Kbela tem uma referência principal que é o Zózimo Bulbul, que é o [diretor do curta-meragem] “Alma no olho”, que é um filme da década de 70, que usa a linguagem muito experimental, desconstruída, fora do padrão, do roteiro que é o início, meio e fim, com os pontos de viradas ali de apresentação, plano de virada, desenvolvimento, ponto de virada, finaliza. Então, como que a gente organiza nossas histórias sem início, meio e fim? Mas que conte uma história através de outra estrutura. Então acho que essa estrutura, a minha escola, nesse sentido do Kbela foi o Zózimo Bulbul, porque ele traz que esse modelo de contar história início-meio-fim é um modelo colonizado também. É um modelo imposto pra dizer: isso é filme, isso não é! O que foge do início-meio-fim não é filme, não é cinema! E aí eu acho que o Zózimo responde: é cinema sim! É linguagem, tem espírito, traz experiência, as pessoas se emocionam, o som entra nas pessoas e as pessoas ficam incomodadas com o barulho “por que o barulho é tão alto?”
Uma vez um cineasta famoso aqui no Brasil, filho de um cineasta famoso brasileiro que fez história no cinema nacional, me ligou e falou: olha, isso que você fez é cinema! E eu já sabia que era cinema, porque, o processo mostrou, entendeu [risos]? E, na verdade, [essa fala é um exemplo d]esse olhar do branco querer legitimar aquilo como cinema, [o que não era necessário, pois] se a gente já tinha colocado mulheres de 60 anos de idade, criança, jovem e todo mundo participou daquela experiência. Então, naquele momento quando o Kbela foi exibido pela primeira vez numa sala de cinema, eu vi que era cinema, tá entendendo?! Então, é claro que soma, mas não é o que legitima como cinema pra mim. E aí ele falou “mas eu achei muito alto o barulho, eu achei muito alto e por que você não diminui mais o volume? Porque a poética… E não sei o que…” E aí eu falei assim ” não, não preciso diminuir porque é esse o som que as pessoas negras ouvem todos os dias, que são lançados sobre esses corpos. SONS ALTOS, VIOLENTOS!
O filme inicia por isso: qual é a nossa trilha sonora? [Como se estivesse falando com as pessoas brancas e/ou como resposta ao cineasta] O seu conforto, a sua narrativa, o seu corpo, ele pode não ouvir tanto barulho assim, mas a gente ouve! Esse corpo tem muita sonoridade! Tá regado de sonoridade, de toque, de pancada, de xingamento, de tentativa de humilhação em público etc etc… Então, vai ser alto!”. E aí, ele ficou… pá….
GP: Muitas vezes, o discurso do “tornar-se negra” – muito embora a expressão seja usada por Lélia Gonzáles e Neusa Santo Souza – ainda causa certo estranhamento, indignação em mulheres que sempre se souberam negras, principalmente por causa de sua classe social. O que você entende por “tornar-se negra”?
YT: Tem uma frase da Makota Valdina [educadora, líder comunitária e religiosa brasileira, militante da liberdade religiosa, como porta-voz das religiões de matriz africana, bem como dos direitos das mulheres e da população negra] que eu lembro muito e que é o seguinte (ela fala de poder): nós temos que ter poder, mas como? Pra aplicar uma lógica branca? A gente vai ter poder, vai ser poderoso, vai ser o presidente, vai ser o dono, mas a gente vai o quê? Reproduzir uma lógica branca, opressora, de exclusão? Quais serão os valores desse poder? Porque se for poder por poder não adianta, você vai mudar o branco pelo preto e vai continuar a mesma coisa.
Nesse sentido existe um sentido implicado no negro que eu não acho que seja no sentido romântico, mas no sentido do valor. Do valor dos nossos trânsitos pelo Atlântico, das nossas andanças. O nosso deslocamento diaspórico traz uma série de valores de luta, de força, de construção. E como que a gente faz isso? Então eu acho que tornar-se negro nesse sentido é como você se entende como negro e um como um agente que tem que transformar essa realidade que você vive e que oprime muitas pessoas há muito tempo. Então, se perceber enquanto tom de pele não é o suficiente, porque você tem que ter tomado consciência de si. Eu tenho um irmão dessa cor aqui [aponta para um cinzeiro de cor preta] e fala que é branco, tá entendendo? E aí eu não posso chegar pra ele e: não, você é negro! Ele tem que perceber isso.
A gente vive também numa lógica de que todo mundo é igual, que cor não importa e tal… Apenas na violência importa, né? E aí nas relações aqui “ah, não somos todos iguais, brancos e negros, não vamos classificar isso”. No entanto somos sempre racializados, o negro é sempre racializado, quando o negro vai racializar o branco é errado! [As pessoas acham que] é certo falar “arte negra”, mas “arte branca”, não! Então eu acho que tornar-se negro nesse sentido é você ter consciência de si. Não tô falando que todo mundo tem que ser militante, mas entender a sua função, entender o seu corpo, entender o racismo que existe, entender as práticas que você pode reproduzir também. Não estou dizendo que você vai ser racista, mas que você pode reproduzir [o racismo] no seu pensamento. É o que Makota vai dizer: poder pra quê? Como? Que valores [estão] associados? Porque se forem valores brancos não adianta! E a gente tem! É claro que não é uma culpa do negro, é porque você tem um sistema colonizador.
Quando eu cheguei em Cabo Verde, eles não se sentem africanos, eles falam: nós somos Atlanticanos. Porque não tá tão colado no Continente Africano, eles são arquipélago, né? Tá um pouquinho distante e eles já se sentem fora do Continente! Por quê? Porque existe um processo de colonização, tá entendendo?! Eles não querem se associar a uma imagem negativa da África, essa imagem negativa que se criou da doença, das guerras, da miséria. Então, entender-se como negro pra mim, tornar-se negro é quando você domina ou quando você tem ideia do que é ser negro no Brasil e como que você responde a isso. Qual é a sua postura, entendeu? Porque eu acho que tem uma coisa que o GOG (o rapper) fala: pele preta, postura preta. Então acho que tornar- se negro é essa postura preta. É o modo como você se coloca, é o modo como você fala, o modo como você lida com o outro, o modo como você pensa, o modo como você produz!
Então eu acho que é isso tornar-se negro.
GP: Eu sou professora de português, e eu adoro umas regras, adoro fonética. E o nome Kbela me chamou atenção: por que Kbela com “k”, por que o “e” aberto e por que no gênero feminino.
YT: Então, Kbela é “K” e “bela”: K de cabelo e o bela de beleza. No conto MC Kbela, que é o conto que disparou o filme, eu conto a história de uma menina negra de periferia (de Nova Iguaçu especificamente), que passa por um processo de transição e se descobre enquanto negra nesse processo: de entender a sua identidade, de entender o seu corpo, de entender que cabelo e corpo estão ligados, sim! E que não é uma coisa e outra, que cabelo não é adorno que nem eu já ouvi. [reproduzindo uma fala] Não, cabelo é adorno, e não é! [O cabelo] faz parte do corpo. Tanto é que é o que te identifica, é o que serve pra dizer “é, você não serve pra trabalhar aqui”.
Quando uma pessoa diz que você não serve pra trabalhar ali e põe a culpa no seu cabelo, é claro que é o seu corpo, entende?
Então, o Kbela no feminino é porque a gente fala de uma narrativa feminina a partir de mulheres. Um processo de transição que não esteja ligado aos homens, mas porque a gente queria trazer essa questão da mulher, inclusive porque tem uma pressão também! Essa preocupação grande com o cabelo, de você estar o tempo todo se embraquecendo e se apoiando em aparatos brancos pra poder ser alguém.
Por isso que a gente quis partir de uma narrativa feminina que contasse o racismo. Que contasse esse um lado do racismo, uma história, uma parte da história a partir de uma visa e da perspectiva de mulheres negras.
GP: [Na Oficina de Comunicação: Mulheres nas Telas e em foco, representatividade e não-violência] você falou sobre a dificuldade de execução, de realização e até de acesso dos negros à nossa própria cultura. Há uma discussão e – na minha opinião – ainda muito tímida, sobre a apropriação dos espaços negros (Baile Black Bom, rodas de samba, bailes funk com ingressos caríssimos) por pessoas brancas. Você acha que esse acesso de pessoas brancas aos espaços de cultura negra é, de fato, apropriação? Ou não, [de forma irônica] somos uma cultura miscigenada e que ótimo que tá todo mundo partilhando.
YT:[Se referindo à festa ERREJOTA: O bale funk é foda – realizado dia 9 de abril no Píer Mauá, com ingressos a R$ 100 antecipado, e notícias de que estava sendo vendido a R$ 300 na hora]. Pô, saiu um vídeo aí, acho que foi na Marina da Glória. Um cenário montado, tipo assim: favela, moto táxi, violência. Até falaram “vai ter tiro também? Corpo no chão?”
Essa questão da apropriação é nítida! O mercado entendeu que o negro é um potencial comprador e consumidor, né?!
Tem uma frase que uma amiga fala que é: o capitalismo nos esqueceu. Eu falo: não esqueceu, não! Estamos operando nos piores lugares, nas piores posições do capitalismo. O capitalismo não é só você comprar, é você operar ele, entendeu?! Ali na estrutura, no trabalho escravo, costurando, montando, botando botão, carregando caixa pesada. Então, ele não esqueceu a gente, ele usa a gente pra sobreviver.
Agora, uma coisa que – sobre essa questão da apropriação cultural – eu já ouvi, por exemplo, foram analogias com calça jeans. “Ah, mas vocês usam calça jeans. E aí? Isso não é apropriação cultural?”
Eu acho o seguinte: existem espaços que são feitos de fortalecimento, entendeu? O funk, o Baile Funk, o charme, as Festas Black, são espaços de fortalecimento da comunidade negra. Ponto.
Quando você passa por um percurso da cidade, você trabalha no centro, nas zonas nobres e você tem que atravessar toda a cidade pra chegar na sua casa, na faculdade, você é cercada por mecanismos, respostas, frases, modus operandi, gestos que fazem com que você não se sinta bem naquele espaço.
E aí o modo que nós negros temos pra sobreviver é a criação de espaços de diversão e que muitas vezes o Estado não está preocupado.
Às vezes eu ouço “ah, eu vou no baile do Viaduto de Madeireira e não me sinto bem” (brancos, amigos brancos falando), “não me sinto bem porque os negros me olham estranho e parece que eu sou branco demais pra tá ali”. E aí eu falo “cara, você tem que entender que é assim que as pessoas negras se sentem o tempo todo! Você se sente mal ali, naquele espaço. E qual outro espaço você se sente mal por você ser branco? Em que espaço essa diferença está colocada?”
E aí você pensar, que aquela pessoa que não se sente mal em nenhum espaço, quer ser protagonista, produtor, organizador de uma festa e utilizando da cultura do outro como alegoria, alegorizando, mistificando a pobreza, romantizando a violência, entendeu? Romantizando o fato do moto táxi ser um mecanismo que jovens populares tiveram pra resolver a questão do transporte público, isso é o que a não ser apropriação?
Por que não conversar? Por que não tentar fazer junto? Por que querer o tempo todo ser protagonista? Mais? Por que se sentir privado quando o espaço é criado pra fortalecimento da comunidade, pra um modo de criação de espaço que não seja esse hegemônico, da indústria? Por que se apropriar disso também? E por que não entender isso como uma apropriação cultural? Por que querer lucrar a partir disso como a cereja do bolo, mas não como os beneficiários?
Então, as pessoas não se beneficiam disso. As pessoas que têm a sua cultura usada continuam sendo perseguidas pela polícia, continuam sofrendo pelo problema da estratégia de segurança pública montada pra Copa e para as Olimpíadas, continuam morrendo na ponta, continuam sofrendo com o problema de a prefeitura cortar as moto táxi. Continuam sendo estigmatizadas. Não causa uma mudança, entende?
É uma apropriação no sentido de realmente você dominar aquele campo, de você utilizar aquilo como alegoria pra fazer um carnaval e nada mais disso. É diferente quando um negro faz uma festa com a sua cultura porque ali ele tá dando conta de uma coisa que o Estado e o mercado não dão! Que é criar um espaço onde ele possa se divertir, de ele dançar sem ser julgado por ser quem ele é. Que ele possa usar a roupa dele do jeito que ele usa, o short dele, o batom dele, o cabelo dele, o jeito dele, falar como ele gosta de falar, tá entendendo?! Então, acho que nesse sentido a gente tem que repensar a questão da apropriação e promover mais diálogos pra que isso seja entendido.
Porque, às vezes, eu entendo que a comunicação não chega. A menina [que também palestrou na Oficina] falou uma coisa muito bem: “Comunicação não é aquilo que eu falo, mas é aquilo que o outro entende”. Existem lados, que estão com as suas verdades formatadas de que “ah, ninguém pode ser privado, liberdade de expressão”. Quando não se trata disso, é uma questão subjetiva que vai além disso, entende? Que a liberdade de expressão não pensa pra essas pessoas; as pessoas não têm liberdade de expressão dentro da sociedade. Elas privadas de falar, são privadas de ser.
Então, a gente precisa promover diálogos pra que esses muros sejam cada vez mais quebrados e que essas pontes aconteçam, pra que as pessoas entendam que não é maneiro fazer festa mistificando e romantizando a pobreza. E muitas vezes essas pessoas que estão aqui fazendo essas coisas, são pessoas que não sabem nem como é mesmo, entendeu?! Elas pegam ali, vão pincelando… São da arte! Vão pegando referência, o que elas acham bonito, o que elas acham potente, vão romantizando as coisas, mas não tem um repertório, elas não trazem uma formação.
Eu estudo na PUC, eu vejo isso! As pessoas realmente não sabem, elas não sabem como é que é a vida depois do Túnel [Rebouças], entendeu?! Não sabem, não sabem mesmo! E não sabem não é só por falta de interesse, mas porque nunca tiveram a oportunidade ou a chance de entender, não foram educados pra entender. Enquanto a gente, não! A gente sempre teve que entender a lógica pra não dançar!