Em comemoração ao Dia da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha é com muita alegria que publicamos entrevista com a intelectual, psicóloga, professora, pesquisadora, escritora e ativista Jaqueline Gomes de Jesus, cujo trabalho é dedicado à inserção da população negra no mercado de trabalho e ao universo da comunidade trans*. Seus objetos de estudo versam sobre a psicologia social, a gestão da diversidade e os movimentos sociais, sempre relacionandos à questões de gênero, de orientação sexual, de identidade de gênero e de cor/etnia.
Uma das jovens griôs da Diáspora, por seu trabalho e por sua produção intelectual, Jaqueline Gomes de Jesus é vencedora do Prêmio Jabuti de 2012 como co-autora de Psicologia Social: Principais Temas e Vertentes, onde discute em dois capítulos sobre estereótipos, preconceitos e discriminação e sobre atração e repulsa interpessoal. Integra nossa lista das 25 mulheres negras mais influentes da internet braisleira e assina o blogue Jaqueline J, além de ser autora do Blogueiras Negras.
Blogueiras Negras – O Festival Latinidades traz em sua edição de 2014 as Griôs da Diáspora como ponto de partida para o diálogo, valorizando a importância das mulheres negras como detentoras de saberes essenciais à superação das desigualdades numa sociedade ainda machista, sexista, racista, transfóbica, classista. Qual é,a contribuição dessas personagens em sua trajetória pessoal, sobretudo agora que você contribui para a permanência dessa tradição através do seu trabalho, sendo uma griô que propõe a alternativas ao que está posto?
Jaqueline Gomes de Jesus – Primeiramente, agradeço com humildade por ser considerada uma repercussora dos pensamentos e das práticas de mulheres negras anônimas e reconhecidas que, ao longo de séculos, apesar de todos os obstáculos colocados pelo sexismo, pelo machismo, pela transfobia, pela homofobia, pelo classismo, pelo capacitismo e outras lógicas de exclusão, têm construído sentidos de humanidade e de cidadania que nossas instituições e regimes políticos democráticos ainda falham em alcançar plenamente.
Aos ancestrais e às griôs da Diáspora Negra devo o meu senso pessoal como ser humano integral, como mulher possível e protagonista de si, a eles e elas devo a minha vida. Na luta incansável das mulheres negras encontro a energia e a fé para seguir lutando pela superação da miríade de preconceitos, discriminações e desigualdades que vigoram em nossa sociedade, a partir de um trabalho de reflexão cotidiano e incessante.
Blogueiras Negras – A transmissão de nossas tradições por meio da oralidade é um dos maiores patrimônios da população afrobrasileira. Por outro lado, temos nos tornado personas cada vez mais virtuais, sem que haja necessariamente a conversão dessa enorme rede virtual de pessoas em relacionamentos presenciais. Você acredita que a cultura digital tem ameaçado ou contribuído para que a oralidade seja entendida como um acervo indispensável à nossa humanidade?
Jaqueline Gomes de Jesus – Tenho uma visão, digamos, “otimista” sobre esse processo de virtualização dos relacionamentos. Por um lado, corremos o risco de nos tornarmos turistas que se divertem com a fauna humana e suas experiências à distância, na segurança da rede mundial de computadores, como se nos admirássemos – ou nos assustássemos – com golfinhos – ou tubarões – de nós separados por um vidro (ou uma tela). Isso prejudica o princípio da solidariedade e esvazia o significado da reflexão e da participação política porque, de certa forma, desumaniza um pouco o outro.
Entretanto, por outro lado, quando observo a intensa troca de informações e de relatos pessoais entre pessoas oriundas de grupos sociais historicamente discriminados, propiciada pelo acesso cada vez maior à internet, entendo que a oralidade, como elemento crucial da humanidade enquanto contadora de histórias, permanece, porém com outra roupagem, aliás com a oportunidade para ir além dos guetos e dos agrupamentos fechados, por vezes quase esotéricos, para alcançar um público maior que em outras épocas, por não ser mais tão limitada pela centralidade dos meios de comunicação nas mãos de grupos oligárquicos e devedores de elites desconectadas das demandas das multidões.
Nesse sentido, os movimentos sociais têm se enriquecido quando abraçam as Novas Tecnologias de Informação e Comunicação, chamadas NTICs. Mais que alcançarem um público maior, suas mensagem se pluralizam, encontram novos significados e novos lugares de fala, o que, a meu ver, contribui para a livre expressão de pessoas e movimentos que, em outras circunstâncias, inclusive presenciais, não encontram espaços para publicizarem seus pensamentos e experiências, em especial quando eles são divergentes da coletividade dominante e, geralmente, opressora.
Todas estamos estarrecidas com o desaparecimento de Elizabeth Gomes da Silva, companheira de pedreiro Amarildo de Souza. A notícia tem sido publicizada de forma descontextualizada, demonstrando a resistência da grande mídia em discutir o racismo como violência de caráter também institucional . Como consequência, temos a naturalização e invisibilidade das mais diversas violências sofridas ao mesmo tempo em que não se discute o racismo como um vetor de adoecimento psíquico da população negra. Quais tem sido as contribuições da Psicologia no entendimento de que a violência racial influi diretamente na saúde emocional de pessoas negras?
Felizmente a Beth foi encontrada, está tentando se recuperar de um processo depressivo. Esse episódio reitera exatamente a lógica predominante, nos diversos produtos jornalísticos predominantes, de minimização dos efeitos estruturais do racismo e de criminalização de movimentos sociais, a partir de um discurso de conformidade com a ordem estabelecida que naturaliza e reproduz alienações, como a de que a ordem social estaria sendo indesejavelmente perturbada pelos revoltosos.
Ora, essa é uma inversão de causalidade conveniente para se culpabilizar as vítimas da marginalização, da exclusão e da apartação.
Não se pode culpar os rebeldes pelos problemas sociais, pois são os problemas sociais que geram os revoltosos!
A saúde, de forma geral, ainda é vista como um fenômeno meramente biológico, sem relações com o mundo psicossocial. Psicólogas e psicólogos têm questionado esse posicionamento que limita a compreensão sobre como as relações sociais e os processos de subjetivação podem ser vetores de adoecimento psíquico, especialmente quando falamos de uma população historicamente discriminada em uma sociedade racista, no que se inserem as pessoas negras.
Pessoalmente, tenho me focado na discussão sobre como a subcidadania é construída socialmente, particularmente por meio de relações degradadas nesse nosso mercado de trabalho tardiamente globalizado, e perniciosamente competitivo, o qual tem raízes profundas nos séculos de escravidão que marcaram a construção das nossas imagens e discursos sobre o humano. Isso não é assunto apenas para historiadores, sociólogos ou jornalistas, como já me responderam em um parecer de artigo científico, mas também para psicólogos.
A Psicologia, como ciência e profissão, enfrenta o desafio de superar a visão eurocêntrica e colonial que ainda silencia acerca do sofrimento vivido pelas negras e negros neste país, seja no âmbito individual quanto no coletivo. Entendo que a Psicologia Social, em particular, tem apresentado contribuições relevantes nesse sentido, nos frequentes estudos sobre estereótipos, preconceito e discriminação de cunho racial, e nos mais raros sobre processos de branqueamento e branquitude, ainda que estejamos distantes de uma Psicologia – como conjunto de saberes-fazeres unificados que reconheça os movimentos sociais e intelectuais pulsantes em produção de conhecimentos, para além dos campos acadêmicos, como os feministas contemporâneos, os antirracistas, os movimentos por terra e moradia, entre outros – que realmente poderíamos chamar de “descolonial”.
Blogueiras Negras – O direito à identidade tem sido historicamente negada à população negra. Somos aqueles que não existem, podemos ser tratados apenas como existências descartáveis tanto pelo estado, quanto pelo mercado de trabalho. Qual é a importância das políticas afirmativas, notadamente das cotas raciais, na efetiva reversão dessa percepção e modos de agir que ainda nos tratam como muito menos do que gente?
Jaqueline Gomes de Jesus – As mulheres negras na Diáspora têm, há muito tempo, desenvolvido contradiscursos que buscam colocar as pessoas negras como sujeitos de sua construção identitária, para além das restrições postas pelos estigmas postos pela sociedade racista que as invisibiliza como seres descartáveis, como você mesma apontou, como menos humanas que as pessoas brancas, o que repercute negativamente em todos os aspectos da vida social.
As políticas afirmativas objetivam enfrentar, de maneira sistêmica, as tendências históricas de subalternização de determinadas populações, em um contexto de desigualdades, particularmente nos âmbitos da educação e do trabalho, e envolvem algum nível de intervenção do Estado.
Considero que ações afirmativas são mais efetivas do que discursos que enfatizam a igualdade de oportunidades, tendo em vista a finalidade de se enfrentar as discriminações à capacitação de integrantes de grupos discriminados para se tornarem competitivos em quaisquer campos, além disso, elas contribuem para a melhoria pontual das condições de grupos desprivilegiados, possibilitando a formação, por exemplo, de alguma elite negra.
A inserção massiva de pessoas negras em instituições de ensino superior e no mercado de trabalho, por meio das cotas raciais, que precisam ser ampliadas, é importante não apenas porque tem repercussão numérica, mas também porque auxilia na mudança dos modos de agir socialmente esperados frente a pessoas negras e das percepções sociais acerca da população afrobrasileira.
Blogueiras Negras – A universidade ainda é um espaço cujo acesso é determinado em grande parte pelas desigualdades promovidas pelo racismo em suas mais diversas manifestações. Ainda assim, estamos conseguindo com grande dificuldade mudar esse panorama, sobretudo em função das cotas. Entretanto, uma vez no ambiente universitário, o cotista negro enfrenta mais uma vez um ambiente hostil à sua presença. Quais são os principais desafios para que a universidade se torne de fato uma espaço de acolhimento do negro como ser intelectual à partir de uma a perspectiva psicossocial?
Jaqueline Gomes de Jesus – Fala-se tanto nas universidades como produtoras de saber, mas quantos dos pensadores contemporâneos relevantes para o debate sobre o presente e o futuro do Brasil estão organicamente ligados às universidades, desenvolvendo reflexões pertinentes a partir delas? Não muitos. Isso dá o que pensar sobre as práticas nas instituições de ensino superior em nosso país, que algumas pessoas, como eu, esperam que sejam mais do que produtoras de títulos acadêmicos, que superem o mito nacional de que a educação serve para gerar status, representado por diplomas e cargos, e não para gerar pensamento criativo, livre de amarras administrativas, representado por novas proposições sobre o real.
Os negros, excluídos dos espaços universitários brasileiros ao longo do século XX, veem-se hoje diante de um espaço que os recebe massivamente – como alunos – por meio de ações afirmativas, mas que não superou uma tradição masculinista e etnocêntrica de teorização e instrumentalização, de acomodação nos cargos docentes e de pesquisa que não se submeta a práticas de privilégio a integrantes de grupos de interesse intelectual, dos quais as pessoas negras estão apartadas.
Em uma perspectiva psicossocial, e provavelmente também política, ainda não há empoderamento de pessoas negras na sociedade de forma geral, no sentido de uma agregação coletiva de recursos em comparação com os demais integrantes das organizações, oriundos de outros grupos sociais, o que se reflete no microcosmo das universidades. Isso se expressa objetivamente na ínfima conquista de cargos oficiais, nessas instituições, por negras e negros, que as habilite a desafiar a hierarquia étnico-social posta.
Observe as trajetórias de ascensão social de negras e negros com formação universitária, e note que elas invariavelmente se concentram, com obstáculos, fora das universidades, o que pareceria normal, se a proporção não fosse condizente com a de pessoas brancas que conseguem desenvolver seus processos identitários e de construção profissional dentro ou ao lado das universidades.
Por isso tudo precisamos ser mais críticos quando ouvimos pessoas que enchem a boca para se dizerem herdeiras do espírito universitário, mas que em suas universidades compartimentalizam o saber científico e fazem de seus cargos capitanias quase que hereditárias.
Em tal conjuntura, os intelectuais negros não serão encontrados em peso lecionando ou pesquisando em instituições de ensino superior, porque esse campo não nos é facilmente aberto, ou melhor, é arduamente dificultado.
Felizmente, o saber social continua vivo e incessante em outros espaços, especialmente nos espaços virtuais de discussão, nos movimentos sociais autônomos e nos organizados, proliferando conhecimentos que de fato nos permitem pensar este Brasil que vemos por aí, e quiçá transformá-lo.
Blogueiras Negras – Costuma-se pensar a inserção da pessoa negra na universidade como uma via de mão única, como se o único a ser beneficiado fosse apenas o estudante e não a própria instituição. Mais uma vez são desconsiderados os saberes de toda uma população, que nada teria a oferecer em contrapartida. Qual é a contribuição gestão da diversidade cultural no entendimento de que a presença do estudante negro gera benefícios para toda a sociedade e sobretudo para as instituições que o acolhem?
Jaqueline Gomes de Jesus – No que tange à presença negra nas universidades, ela é significativa não apenas para o indivíduo e seus familiares, mas igualmente para a comunidade que o cerca e toda a população negra.
É importante disseminar a compreensão de que a inclusão de grupos sociais diferentes, em um espaço antes homogêneo, não se constitui apenas como justiça social, mas também como vantagem comparativa na constituição de equipes que apresentam resultados mais criativos porque são diversas. É relevante estimular a comunidade para a valorização dos novos atores institucionais que compõem a sua diversidade interna.
O objetivo da gestão da diversidade, nesse ambiente diverso, é o de trabalhar pela inclusão de pessoas com diferentes atributos sociais, a fim de que a organização as respeite e as agregue a si como atores institucionais tão dignos quanto os já estabelecidos. Isso é estratégico para que as instituições acolhedoras se beneficiem ao máximo com a presença das novas pessoas, que não será apenas simbólica, mas significativa para transformar seus pontos de vista e visões de mundo, para enriquecê-la como integrante de uma sociedade multicultural que a cerca e sustenta.
Blogueiras Negras – As mulheres negras são a maioria da “geração nem nem”, aqueles que não trabalham e nem estudam, somando 2,2 milhões ou, 41,5% desse grupo. Quais são as demandas específicas desse grupo em relação aos homens negros e em relação à população branca que se encontra nessa mesma situação de vulnerabilidade?
Jaqueline Gomes de Jesus – Historicamente, o trabalho das mulheres negras tem sido o sustento de várias gerações negras, não necessariamente relacionadas por vínculos sanguíneos, e muito mais por relações comunitárias, de adoção, de cuidado, de ensino (basta reconhecermos o trabalho das Mães de Santo como educadoras), contrariando a lógica tradicional do homem/pai como provedor econômico dos lares, e demonstrando a fragilidade conceitual do papel biologicista e heteronormativo atribuído às mulheres, pela política sexual racista e eurocêntrica, como mães. As mulheres negras enfrentam as opressões sistêmicas exercendo a maternidade, preponderantemente, como uma liderança social, comunitária, subvertendo a própria ideia essencialista de maternidade.
Esse mesmo trabalho, apesar de profundamente marginalizado, tem sido igualmente indispensável para se repensar a organização e movimentos de libertação de pessoas negras, desde o nível micro ao macro.
Como os dados demográficos demonstram, ser mulher e negra no Brasil constitui uma exposição a desigualdades de gênero e étnico-raciais às quais homens brancos ou negros, e mesmo mulheres brancas, não estão submetidas com a mesma gravidade que as mulheres negras. Quando nos referimos a educação e trabalho, essas diferenças ficam gritantes.
Blogueiras Negras – Como a maioria da chamada Geração Nem Nem não poderia ser de pessoas negras, principalmente as mulheres, neste país onde o racismo e o machismo são elementos transversais das relações intergrupais e interpessoais?
Jaqueline Gomes de Jesus – As mulheres negras que se ocupam nos cargos mais desvalorizados da sociedade, recebendo os menores salários, tem poucas oportunidades e pouco tempo para se aprimorarem, em termos educacionais (lembre que a maioria da população negra, constituinte predominante da população pobre brasileira, encontra espaço nas instituições de ensino superior privadas, e não nas públicas), para tentarem alçar melhores posições no mercado de trabalho, e mesmo quando são capacitadas e qualificadas, sofrem com a discriminação quando competem com pessoas brancas.
O que entendo é que as políticas públicas de emprego e renda erram ao não reconhecerem o potencial da mão de obra das pessoas negras, especialmente as mulheres negras, na transformação da economia.
Aprofundar ações de escolarização, tais como o financiamento público para acesso a instituições de ensino superior privadas, e não apenas públicas, é algo indispensável, que deve ser realizado conjuntamente com iniciativas, de inclusão qualificada no mercado de trabalho, que não se restrinjam ao setor público.
Blogueiras Negras – As experiências da adoção de cotas tem se mostrado exitosas na formação de profissionais negros extremamente bem qualificados, tanto quanto seus pares de outras populações. Ainda assim, o mercado de trabalho ainda mostra resistência na contratação de profissionais afrobrasileiros, cotistas ou não. Em muitos casos não é possível comprovar a discriminação, que costuma acontecer durante o período de entrevistas. A exemplo do trabalho desenvolvido no Centro de Convivência Negra da Universidade de Brasília, podemos pensar na implementação de iniciativas que apoiem profissionais negros em sua inserção no mercado de trabalho?
Jaqueline Gomes de Jesus – Sim. Essas iniciativas são urgentes, especialmente imprescindíveis para a construção de uma consciência, no mundo do trabalho brasileiro, marcado pelo racismo e por desigualdades de cunho etnicorracial, para que sejam desenvolvidas formas de enfrentamento coletivo, no contexto laboral, à exclusão de pessoas negras.
Para além de cotas, entre as ações afirmativas que demonstraram bons resultados, fora do Brasil, e que poderiam ser adotadas, especialmente quando nos referimos ao contexto privado, são o estabelecimento de estímulos econômicos, como a redução de impostos ou taxas, para empresas que incluem pessoas negras, e outros representantes de grupos discriminados, em cargos de direção; e também a obrigação legal da representatividade de pessoas oriundas de grupos discriminados em peças televisivas e outras de natureza publicitária.
Blogueiras Negras – Em Identidade de gênero e políticas de afirmação identitária é feita a denuncia de como as pessoas trans* ainda enfrentam uma realidade de “exclusão extrema, sem acesso a direitos civis básicos, sequer ao reconhecimento da identidade. São cidadãs e cidadãos que ainda têm de lutar muito para terem garantidos os seus direitos fundamentais.” Quais seriam desafios que se colocam à superação desse panorama, especialmente se tivermos em mente a inserção de transexuais e travestis negras no mercado de trabalho?
Jaqueline Gomes de Jesus – As pessoas trans, de forma geral, não são consideradas de fato como pessoas, ou seres humanos, neste país, vivendo portanto uma experiência de exclusão próxima à das pessoas negras, que ainda não são tratadas de fato como cidadãs. Quando falamos então de pessoas trans negras, o nível de desumanização alcança o do extermínio, seja ele psicológico, social ou físico, aliado à invisibilidade social.
Creio que a inserção de pessoas trans negras no mercado de trabalho deva partir, primeiramente, do reconhecimento de sua identidade de gênero, isto é, as pessoas trans precisam ser reconhecidas pelo nome e gênero com relação aos quais se identificam. Isso acarreta um enorme desafio social e legal, que está na pauta dos movimentos sociais trans, mas que precisa ser melhor abraçado pelos grupos organizados.
Apesar de se reconhecer a exclusão das pessoas trans brasileiras no mercado de trabalho, não se conhecem em profundidade a sua formação educacional, experiências profissionais e interesses profissionais, para que se tenha uma ideia de sua heterogeneidade e se planeje, com precisão, intervenções educacionais ou em locais de trabalho que incluam as pessoas de acordo com as suas potencialidades e promovam a valorização das pessoas trans, para se evitar a reprodução de estereótipos. Não se pode inferir que, pelo fato de alguém ser uma mulher trans ou uma travesti, essa pessoa deva necessariamente fazer cursos na área de beleza.
É preciso realizar uma caracterização socioeconômica, educacional, incluindo mapeamento profissiográfico, acesso aos serviços públicos, identificação de violências sofridas nos níveis individual, grupal, comunitário e institucional.
Quando penso na experiência laboral das pessoas trans negras, sobre a qual posso falar não apenas com conhecimento teórico e investigativo, mas também pessoal, tais questões se problematizam, e demandam maiores cuidados com a intersecionalidade de opressões, de cunho racial e de gênero, que não se colocam para as pessoas trans brancas.
Como tenho dito frequentemente, uma mulher trans negra, ou uma travesti negra, não vivencia uma soma de violações e exclusões, mas uma multiplicação delas! E de forma perversa, porque não necessariamente verbalizada por quem a exclui dos espaços educacionais e do mercado de trabalho, e não necessariamente visível para quem observa de fora.
Blogueiras Negras – No Brasil há pouco material disponível acerca da população transexual. Apesar de termos uma das maiores taxas de assassinatos e suicídios vitimando pessoas transexuais, há pouco material disponível tratando sobre essa população. Tendo em mente esse estado de coisas nefasto, responsável por violências tanto simbólicas quanto palpáveis, qual é a importância da oralidade na preservação da vivência de pessoas transsexuais como existências plenas, sujeitas de sua própria História?
Jaqueline Gomes de Jesus – Eu aprofundo essa discussão em Transfobia e crimes de ódio: Assassinatos de pessoas transgênero como genocídio, e pontuo que as mulheres trans e as travestis são alvos recorrentes de uma violência letal de gênero, que pode ser categorizada como uma forma de genocídio. A professora Berenice Bento tem busca elaborar essa ideia ao nível sociológico, e propôs o conceito de transfeminicídio, com o qual concordo.
As estatísticas oficiais sobre homofobia erram gravemente quando misturam os números das violações contra pessoas trans com as de pessoas lésbicas, gays ou bissexuais, e contribuem negativamente para a formulação de políticas de inclusão próprias às especificidades da população transgênero.
Se já temos poucos dados sobre as violações contra as pessoas trans, os referentes a suicídio são praticamente inexistentes, o que é alarmante, considerando os relatos que ouvimos e os dados de países como os Estados Unidos da América, que evidenciam como os jovens trans são mais suscetíveis a tentarem o suicídio, e conseguirem, em decorrência da transfobia que sofrem, do que jovens lésbicas, gays ou bissexuais, com os quais geralmente são confundidos, erroneamente.
No mais, quando penso na importância da oralidade para a população trans, eu sei que ela sempre foi fundamental para a formação de algo que chamo de Cultura Trans, uma cultura do corpo e do cuidado de si que há pelo menos um século, acredite, foi iniciada pelas travestis brasileiras, e que segue viva hoje, porém lamentavelmente sendo invisibilizada e aproveitada comercialmente, tida como uma genérica cultura LGBT, desconsiderando-se sua importância para a preservação da identidade e mesmo da vida de milhares de pessoas trans por gerações.
A Cultura Trans é, ainda hoje, uma cultura oral, criativa e representativa do que as pessoas trans pensam e vivem, mas cujo entendimento no contexto histórico não tem sido reconhecido como deveria.
O meu posicionamento, com relação à preservação e à consolidação da Cultura Trans, é de que ela ocorre em 3 níveis: 1) As pessoas trans se reconhecem como cidadãs. Isso ainda é frágil hoje, pois muitas pessoas trans estão ainda conformadas com as velhas concepções dimórficas (mulher=vagina; homem=pênis), e se não se entendem como seres humanos plenos, e não como abjetos, como poderão se entender como cidadãs; 2) Os parceiros afetivos e políticos das pessoas trans também partilham da ideologia que permite viver à pessoa viver de acordo com a própria percepção e como se relaciona com outros, e não em função de uma parte do corpo ou da genética; e 3) Visibilidade social. Não falo da exposição das vidas privadas, mas da existência de momentos e espaços especiais onde, eventualmente, as demandas das pessoas trans, seus parceiros afetivos e políticos se tornem visíveis para si e para a sociedade em geral: campanhas, textos, vídeos, internet, debates, exposições… Nas quais as pessoas trans falem de si, por si mesmas.
É essencial às travestis, às mulheres e aos homens trans, antes criminalizados e hoje inferiorizados e patologizados, saber que não são objetos dignos de curiosidade, de marginalização ou de desejo, porém excluídos. Para esse fim, as pessoas trans precisam de espaços que possam chamar de “seus”.
Em tal aspecto, os espaços virtuais surgem como uma alternativa de diálogo, troca de informações e, até mesmo, de formação de relacionamentos afetivos, sejam quais forem. Têm sido utilíssimos em mostrar às pessoas trans que elas podem se amar e serem amadas, e não apenas usadas para entretenimento de outros. E mostrar à sociedade que elas têm sonhos, amigos, parentes, companheiros. Que são portadoras de experiências e sensações, de formas de ser.
Leia artigos de Jaqueline Gomes de Jesus
Atração e repulsa interpessoal, 2011. Em C. V. Torres, & E. R. Neiva (Orgs.), Psicologia social: principais temas e vertentes (pp. 238-249). Porto Alegre: ArtMed.
A cabeça do libertador, 2011. Em R. R. Figueira, & A. A. Prado (Orgs.), Olhares sobre a escravidão contemporânea: novas contribuições críticas (pp. 153-168). Cuiabá: Editora da Universidade Federal do Mato Grosso.
Feminismo transgênero e movimentos de mulheres transexuais, com Hailey Alves, 2012. Disponível em: http://www.periodicos.ufrn.br/index.php/cronos/article/view/2150/pdf
Orientações sobre identidade de gênero: conceitos e termos, 2012. Disponível em: http://www.sertao.ufg.br/pages/42117
Psicologia social e movimentos sociais: uma revisão contextualizada, 2012. Disponível em http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/psi-sabersocial/article/view/4897/3620
O desafio da convivência: assessoria de diversidade e apoio aos cotistas (2004-2008), 2013. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/pcp/v33n1/v33n1a17.pdf
Alegria momentânea: paradas do orgulho de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais, 2013. Disponível em http://www.fafich.ufmg.br/gerais/index.php/gerais/article/view/287/267
Quem liberta quem? Percepções de libertadores de escravos no Brasil contemporâneo, 2013. Disponível em http://www2.pucpr.br/reol/index.php/PA?dd1=7618&dd99=view
Psicologia das massas: contexto e desafios brasileiros, 2013. Disponível em http://www.ufrgs.br/seerpsicsoc/ojs2/index.php/seerpsicsoc/article/view/3649/2266
O conceito de heterocentrismo: um conjunto de crenças enviesadas e sua permanência, 2013. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/pusf/v18n3/a03v18n3.pdf