Não tem como pensar em feminismo sem pensar na especificidade de cada mulher. É nesse sentido que o feminismo intersecional se mostra necessário, pois põe em discussão a luta aos demais tipos de opressões sofridas além do gênero, como raça e classe. Ontem eu vi o filme “Estrelas Além do Tempo”. O longa baseado no livro Hidden Figures (Figuras Ocultadas), é ambientado na década de 60 nos Estados Unidos e retrata a história de três mulheres negras de um centro específico de matemática da NASA. É importante destacar que Hollywood nos devia um filme sério e encorajador protagonizado por mulheres negras. Com atuações maravilhosas, indicação ao Oscar de Melhor Filme e de Melhor Atriz Coadjuvante a Octavia Spencer, o longa ainda deixa passar pontos bem importantes para a luta do feminismo negro e traz mais uma vez o debate à tona.
“Toda vez que a estamos chegando, eles movem a linha de chegada” — Mary Jackson em Estrelas além do tempo
Primeiramente, precisamos entender quem são essas mulheres. Katherine Johnson, Dorothy Vaughan e Mary Jackson são negras de classe média, formadas em universidades e as melhores nas suas respectivas áreas. Mesmo sendo uma das épocas mais sangrentas da história, essas mulheres tinham noção de feminismo, de empoderamento e de luta por direitos civis. Apesar de o filme destacar a interseção entre as opressões — elas eram discriminadas principalmente por sua cor, mas também por serem mulheres –, ele esquece mais um braço dessa interseção: a classe social. Em nenhum dos 127 minutos do filme a questão de classe é colocada em debate e, para mim, não tem como dissociar racismo e classe, sendo que a maioria dos negros nos Estados Unidos era, e ainda é, pobres. No Brasil, a realidade é a mesma. Segundo o recente dossiê “A Situação dos Direitos Humanos das Mulheres Negras no Brasil — Violências e Violações”, “as mulheres negras representam o principal grupo em situação de pobreza. Somente 26.3% das mulheres negras viviam entre os não pobres, enquanto que 52.5% das mulheres brancas e 52.8% dos homens brancos estavam na mesma condição (IPEA, 2011).” Além disso, mulheres negras são maioria em áreas com menor saneamento básico, acesso a água encanada, coleta regular de lixo etc.
O segundo é que o filme é baseado na falácia da meritocracia. Em meio às muitas resenhas e críticas, um site com milhões de acessos diários terminou seu texto sobre o longa da seguinte forma: “Estrelas Além do Tempo, porém, se destaca ao não apostar no vitimismo de suas protagonistas. Seria muito fácil, com uma história assim, ficar no sofrimento oriundo do preconceito. Ao invés disso, a trama mostra que cada derrota faz com que elas tenham mais vontade de lutar, mais vontade de serem aceitas, mais vontade de verem seu trabalho dar certo.” Essa perspectiva que o filme mostra que é perigosa. Isso de “elas estão ali porque merecem, lutaram, estudaram, puseram a família em segundo plano” não mostra a realidade dos fatos, principalmente dos negros na década de 1960. Representatividade importa, reconhecimento também, e é bom que o mundo saiba que para o lançamento em órbita do astronauta John Glenn foi fundamental o trabalho de uma negra. Mas esse discurso liberal falando para tantas mulheres negras “sejam as melhores, estudem, trabalhem, se matem, mostrem seu valor que um dia vocês chegarão lá” é cruel demais. As mulheres negras que trabalhavam na NASA em 1961 são exceções. Motivos de orgulho? Sim, Beyoncé e Rihanna também, mas assim como as divas cantoras, são exceções.
O terceiro ponto que o filme peca, em minha percepção, é a excessiva presença do homem branco de classe média alta bonzinho, que dá permissão para que elas estejam onde estão. Como muito bem observado por um amigo durante a sessão, não era uma questão de compaixão, era capitalismo. Eles precisavam delas para se mostrarem melhor que os russos, e só assim, nessas condições, eles eram pessoas “desconstruídas”, não-racistas. Sabe o “não sou racista não, até contratei um negro”? Então, romantizar isso num filme sobre a glória de mulheres negras em 1961 é, também, um ato cruel.
Assim, termino dizendo que o filme tem um bom enredo e alegra muito o meu coraçãozinho de negra periférica, principalmente por ser baseado em uma história real que ninguém sabia, entretanto, falta muito para o cinema hollywoodiano promover um debate real, sem meias verdades. Sigamos.
Imagem destacada – divulgação