Fragmentos de um Corpo-Templo

O corpo feminino negro em cena é retratado como sujeito de direitos pela artista.

O corpo negro é um “arquivo de repertórios culturais próprios.”
Stuart Hall

De 08 à 10 de junho aconteceu no foyer do auditório da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia uma mostra artística dos Trabalhos de Conclusão de Curso de Artes Visuais das artistas: Heloisa França, Tainã Araújo e Vanessa Santos, intitulada Minhas Yás. Dentre ela destaco aqui a Exposição Corpo-Templo realizada por Heloísa França, natural de Feira de Santana – BA, fotógrafa negra, bissexual e de religião de matriz africana, que através de suas lentes, ângulos, perspectivas e olhar fotográfico imprime em imagens fragmentos do corpo negro num cruzamento com nossa ancestralidade.

Segundo Heloísa, “as mães abriram os caminhos para à Mostra”, por isso o título em iorubá que significa “Minhas Mães”. Quanto ao seu trabalho, intitulado Corpo-Templo, que constituiu numa performance visual e sensorial e na exposição fotográfica, ela descreve que o corpo-templo “foi preparado para o fechamento de mais um ciclo” e que “diante das águas e folhas que nos acalentam, maceramos um amaci na perspectiva de unirmos nossos sagrados femininos e resgatar a memória ancestral que permeia nossos corpos”.

Sabendo que nossas e nossos ancestrais africanos foram tirados a força de seus domus familiar, esse corpo, individual e coletivo, se viu “ocupado pelos emblemas e códigos do europeu”, que dele se “apossou como senhor e seu dono”, nele “grafando seus códigos linguísticos, filosóficos, religiosos, culturais e a sua visão de mundo”, como cita Leda Maria Martins (1997) e como podemos perceber esses reflexos na sociedade e nos meios de comunicação hegemônico, Heloísa rompe com tudo isso.

Como nas tradições culturais no continente africano, os corpos têm conotações próprias, ultrapassando as visões negativas e limitadoras, os significados biológicos e mesmos os simbólicos da cultura ocidental, para estes “o corpo é importante fonte do saber ancestral: é o lugar de transmissão de conhecimentos, de registro de experiências humanas individuais e coletivas”, como cita Cristian Souza de Sales (2012). Contudo, a fotógrafa se apoia nessa linha de pensamento e reflete esses corpos negros femininos, seja nela mesma, na sua avó, mãe ou nas tias que estão em cena em suas fotos.

Em suas fotos que compõem esta exposição, conscientemente a artista utiliza-se de recursos de iluminação e luz do dia para captar bem o corpo negro e suas intencionalidades, mesmo sabendo que a fotografia embora possua “códigos estéticos e um trabalho técnico de manuseio do equipamento fotográfico que ajudam na captação da imagem como para a leitura do receptor”, segundo Cibele Abdo Rodella (2009), e que além de gerar significados a partir de elementos de significação dispostos, ela não é confeccionada para fotografar o corpo negro.

Sendo contra-hegemônica e um corpo resistente, Heloísa faz um trabalho autobiográfico que retrata seu corpo e sua relação com o mundo, desde sua história, nascimento e criação à afirmação de sua existência e identidade, nos proporcionando assim um deslumbramento de instantes de um trajeto, reconhecimento individual e coletivo e uma apreciação de suas belas imagens.

O corpo feminino negro em cena é retratado como sujeito de direitos pela artista. É um olhar de uma mulher negra sobre si própria e que ultrapassa o misto de invisibilidade, submissão, sexualização e do considerado hegemonicamente pelo meio como exótico e faz uma junção de sua afirmação identitária de mulher negra, de sua sexualidade e religião em suas fotografias. E ainda nos surpreende, expondo nas mesmas, que o corpo, além de político, fonte de saber e presente é um elo de conexão com o orixá, ou seja, o corpo também é templo.

Assim sendo, além de apreciar nossa estória através do ensaio Corpo-Templo, para quem é candomblecista como eu, pode também visualizar o processo de preparação não apenas artístico da fotógrafa, mas o de nascimento do Orixá, sua manifestação, seus cuidados pelas mães e todas e todos parentes de santo e a convivência no terreiro. Entretanto, a exposição é bem ampla à múltiplas leituras, apreciações e evoca diversas vivências.

Portanto, assim como a fotógrafa sul-africana, Zanele Muholi, que faz um ativismo visual para forçar a visibilidade de lésbicas negra, negros homossexuais, transgêneros e travesti pela África, Heloísa França faz retratos de si e seu entorno, aqui na Bahia, rompendo com a lógica do branco de mostrar seu olhar sobre nós mulheres negras. E, ambas conseguem demonstrar suas emoções que estão ligadas a si próprias e a estas minorias da qual elas pertencem, assim como eu, e em conjunto lutam por autonomia e reconhecimento.

Imagens – Rafael Santos

Referências

HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Liv Sovik (org). Belo Horizonte:
UFMG; Brasília: Representação da UNESCO no Brasil, 2003.
MARTINS, Leda Maria. Afrografias da memória. São Paulo: Perspectiva, Belo Horizonte:
Mazza Edições, 1997.

__________________ RODELLA, Cibele Abdo. A intencionalidade da imagem fotográfica poética e da imagem fotográfica no jornalismo. Anais II Encontro Nacional de Estudos da Imagem 12, 13 e 14 de maio de 2009 • Londrina-PR.
__________________ SALES, Cristian Souza de. Pensamentos da Mulher Negra na Diáspora: Escrita do Corpo, Poesia e História. Sankofa. Revista de História da África e de Estudos da Diáspora Africana, Ano V, No IX, Julho/2012.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

You May Also Like
Leia mais

Lésbicas negras e a TV Brasileira: o incômodo que me corrói

Estou farta de ligar a TV e me sentir invisível. Quero ver lésbicas negras retratadas com a mesma delicadeza, beleza que pude ver entre Nico (Thiago Fragoso) e Félix (Mateus Solano), em Amor à Vida. Quero ver mais personagens como Carolyn (Aisha Hinds) de Under the dome, cuja primeira temporada foi exibida na Globo até o julho deste ano: lésbica negra, em um relacionamento maduro bem resolvido com Alice (Samanths Mathis), com quem tem uma filha.

As 25 negras mais influentes da internet #25webnegras

Criar uma lista com as 25 negras mais influentes da internet brasileira é uma tarefa prazerosa porém árdua. O motivo é simples, somos muitas e extremamente competentes naquilo que fazemos, beijo no ombro. É como se cada nome representasse na verdade outras 50 mulheres. É por isso que diremos de antemão que muita gente ficou de fora por falta de espaço, claro. Não pretendemos que esse encargo seja definitivo apesar de todo esforço para que fosse representativo.