Fragmentos do descobrir-se negra

Será que eu era “negra o suficiente”? Minhas neuroses gritavam pra mim dizendo que a universidade seria o lugar que nos olhariam e nos apontariam o dedo dizendo: você é negro, você não é negra… próximo! Ao entrar na entrevista para candidatos cotistas minhas dúvidas começaram a se diluir aos poucos. Lá estavam negros de todos os tons de pele e, para minha surpresa, de pele até mais clara que a minha.

Ser mulher negra é uma construção diária de identidade. A minha identidade negra começou a ser construída, infelizmente, há pouquíssimo tempo, mais ou menos há dois anos quando decidi prestar o vestibular. Fiz cursinho popular e concorri como cotista para o curso de Design Gráfico. Na época, prestei ainda com um pouco de relutância, parte por ter a sensação de estar tirando a oportunidade de outra pessoa que precisasse mais do que eu, e parte (este com um peso maior) por não me enxergar como negra. Lembro que essa dúvida não vinha apenas de mim, mas também dos meus pais e irmão.

Será que eu era “negra o suficiente”? Minhas neuroses gritavam pra mim dizendo que a universidade seria o lugar que nos olhariam e nos apontariam o dedo dizendo: você é negro, você não é negra… próximo! Ao entrar na entrevista para candidatos cotistas minhas dúvidas começaram a se diluir aos poucos. Lá estavam negros de todos os tons de pele e, para minha surpresa, de pele até mais clara que a minha.

Imagem - Guilherme Vieira.
Imagem – Guilherme Vieira.

E lá estava dona Vilma Santos de Oliveira, Yá Mukumby, a mulher que acendeu a primeira chama da minha consciência negra. Ela nos alertou, aos candidatos cotistas, quanto às dificuldades que poderíamos nos deparar na universidade, mas que apesar de tudo ela esperava que não nos embranquecêssemos frente a elas.

Apesar de termos nos visto uma única vez, gostaria de dizer Yá, esteja onde estiver, que eu a agradeço imensamente e eternamente, por começar a mudar a minha vida completamente.

A construção da identidade negra não é fácil. Construir, neste caso é, antes de tudo, desconstruir. Desconstruir preconceitos de si mesmo, desconstruir ideias que estão há muito tempo enraizadas, desconstruir sua história e até sua família. É principalmente, tomar consciência dos preconceitos que sofreu, e que sofre, sem tentar justificá-los.

Retomando alguns fatos passados, principalmente da minha infância, percebo o quanto o racismo, que muitas vezes partia de mim mesma ou de pessoas que amava, andou ao meu lado. Uma enxurrada de lembranças, de respostas às perguntas a tanto tempo deixadas de lado foram se desenrolando na minha frente, como num cinema.
Ao me lembrar de que já fui abertamente chamada de feia por ser negra, ao perceber que na adolescência o motivo de me relacionar amorosamente com pouquíssimos garotos não vinha do fato de eu ter amigas mais bonitas do que eu, ao me dar conta de que os apelidos que davam para meus cabelos não eram apenas brincadeiras, senti uma dor nunca antes sentida.

Meu pai é negro, minha mãe nasceu com a pele branca mesmo tendo também descendência negra e indígena. Eu sou negra de pele mais clara, mas na minha infância nunca consegui entender exatamente de que lado eu estava. Minha negritude foi tão podada pelo mundo a minha volta, que invejava e desejava ser como as crianças pretas que eu via brincando pela janela do Fusca marrom do meu pai. Me via pela metade, tentando buscar algo que sabia fazer parte de mim, mas que acreditava não ter direito de me apossar. Mas como invejar e desejar ser algo que eu sempre fui?

Ao mesmo tempo em que acredito que não é apenas a minha cor que pode me dizer o que sou ou deixo de ser, ainda tenho muitos momentos de dúvida. Olho quase todos os dias para meu rosto no espelho, ou para fotos antigas, procurando os traços que comprovam a minha negritude. Vejo fotos de mulheres negras e me comparo, buscando nelas, minhas próprias características.

Sempre que vejo algo relacionado à cultura negra e mesmo tentando construir minha negritude, ainda é muito difícil me sentir imersa neste mundo. E me pego novamente pensando como quando criança e me perguntando: será mesmo que eu tenho o direito de me apossar ao que me é de direito? Se é mesmo meu direito, o que me impede, que força é essa que não me deixa ser livre?

A tomada de consciência nos cobra um preço alto e bastante dolorido. É o primeiro passo dado num caminho sem volta. E apesar da minha consciência estar assim fragmentada e confusa como este texto, acredito que toda e qualquer construção é motivo de orgulho. E mesmo sem estar completa, fico feliz em ao menos ter encontrado os pedacinhos do meu mosaico. Com um pouco de cola, e talvez um pouco torto, um dia tudo ficará no lugar que deve estar.

15 comments
  1. De tempos em tempos eu volto ler esse texto e sempre me impressiona como um texto de outra pessoa pode expressar tão bem o que eu sinto. O processo de construção de identidade é altamente doloroso, e parece que a cada dúvida de qualquer outra pessoa sobre minha negritude a minha se reforça. Daí eu volto pra esse texto, pra esse blog e retomo as minhas próprias memórias, e me identifico com as dores, as histórias… Mas continua difícil, e é difícil saber se um dia vai deixar de ser, se vai chegar o dia em que eu vou ter certeza que sou negra, em que nenhum ‘moreninha’, ‘morena clara’, blabla, me faça recuar.

  2. Que texto maravilhoso! Eu estou emocionadíssima,pois vi meu reflexo por inteiro nele; no seu pensar, nas suas atitudes, as mesmas sensações. Muito bom!
    Por favor, não deixe de escrever mais sobre isso. Meu Deus! Ainda não consigo descrever o turbilhão de emoções em cada palavra posta no seu texto.
    Obrigada, Gabriela.

  3. Emocionante seu texto, Parabéns!! A minha identidade negra começou a ser construída, tbm á pouco tempo.. Me identifiquei muito com seu texto..

  4. Gostaria muito de agradecer aos comentários de todxs vocês. Você não fazem ideia da emoção que estou sentindo, eu que por uns instantes, quase desisto de mandar o texto porque estava achando ele péssimo. Ao mesmo tempo que escrevê-lo me fez um bem grande pois, serviu para mim como um posicionamento oficial da minha identidade, é dolorido relembrar algumas coisas. Mas acredito que relembrando das dores é que encontramos força para não nos deixarmos abater. Obrigada por tudo e muito amor no coração de vocês! =)

  5. Lindo texto! Sou mestranda em Ciências Sociais e estou iniciando uma pesquisa sobre feminismo negro no Brasil. Meus traços físicos fazem de mim uma mulher branca, ainda que minha (nossa!) condição de mestiça seja inquestionável.
    Gosto muito de quando você diz que “Construir, neste caso é, antes de tudo, desconstruir”. Entendo isso de forma que construir uma identidade negra não é simplesmente acatar uma imagem estereotipada e produzida externamente do que significa ser uma mulher negra, mas antes desconstruí-la para, enquanto sujeita da própria história, reivindicar o direito de auto-representação e de construção da própria identidade.
    Essa discussão me emociona muito, e acho que na medida em que desconstruirmos os padrões impostos externamente sobre o que somos, estamos no caminho certo.

    Um beijo!

  6. Sou bem resolvida em relação ser negra.Todos nós ,afro-brasileiros(negros),temos ascendência caucasiana e indígena, não importando o tom de pele ou o tipo do cabelo.Sofremos desde de sempre discriminação,já sofri e ainda sofro.Isso me estimula a lutar por respeito, ter um padrão de vida digno, não permitir ser humilhada sem reação.Temos sempre que reagir, buscando nossos direitos de cidadãos e nos assumindo como negros! Brasil é um país de quase totalidade negros.

  7. Discordo de você, Gabriela, não achei seu texto fragmentado, aliás, achei que foi muito bem descrita a situação do negro que por esse ou aquele motivo, não se enxerga enquanto negro, ou não vê sua beleza, por comparar-se ao modelo “padrão Globo” de beleza. Tive uma trajetória parecida, sendo o ambiente acadêmico a me fazer iniciar o caminho da consciência e militância. Pesquisar sobre a comercialização do samba me fez conhecer as origens de nossa cultura no Brasil e, por tabela, a princípio, os caminhos e descaminhos a que o negro foi lançado desde a escravidão e no pós-escravidão. Parabéns, seja bem vinda à nossa luta social!

  8. Reconstruir uma identidade cultural que foi esfacelada é dolorido para quem se dispõe. Conhecimento verdadeiro as vezes é dolorido, porém é o que liberta! Você não está só!

  9. Gabriela Pires!
    Sua história é a minha também!
    Fiquei muito emocionada lendo suas palavras e me vendo ali, em cada linha.
    Muita força para nós, mulheres negras que têm de lutar por essa negritude todos os dias!
    Axé!

  10. Acho que antes de dar meus parabéns, gostaria de agradecer pelo texto. Você pôs em palavras toda a complexidade pelo qual somos obrigadas a passar, que passamos a vida negando ou simplesmente não conseguindo avaliar a importância de certos questionamentos sobre a atitude da sociedade ao nosso redor. É difícil passar a vida ouvindo que o racismo não existe mas sentir na pele um tratamento diferenciado, e ter que engolir isso, se convencer de que é paranoia ou de que você não é bem recebida por outros motivos, quando na verdade um não exclui a outra. Vivemos na sociedade mais democrática sim, porque ela permite que todas as formas de intolerância ocorram livremente, juntas sem que se misturem e sem que uma denuncie a outra.Muito obrigada, e parabéns pela força das suas palavras.

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Gratidão Lupita Nyong’o

Não sei vocês, mas para mim, usar cores já foi difícil, houve um tempo em que usar um batom colorido era impossível, achava que as cores não combinavam com pele preta. O que pode parecer besteira, não é, essa minha insegurança (e acredito que seja de outras mulheres também) reflete o quanto nós, negras, infelizmente ainda sofremos com a falta de referências, essas que crescemos sem.